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Justiça, pacto social e cláusula pétrea

 

A decisão do Supremo Tribunal, de 18 de agosto, sobre a contribuição dos inativos para a Previdência explicita de maneira exemplar o que seja a prática da democracia profunda pela cultura petista hoje no poder. Lance a lance, cada voto respondeu à interrogação cidadã, de até onde o imperativo de mudança se compadece com a garantia dos direitos adquiridos, e sua consagração no atual Estado de Direito no país. Ou melhor: em que termos a exigência da Justiça pode ir além do pacto social solene da Carta e, nele, das suas cláusulas pétreas, que não comportam sequer emendas constitucionais?


O desfecho ganhou o tom do New Deal, no momento épico dos anos 30 nos Estados Unidos, quando a Corte Suprema, reformada pelas nomeações do presidente Roosevelt, pôde dar respaldo à política de ação pública contra a Grande Depressão, combatendo o desemprego e delineando uma consistente política de aposentadorias nacionais. Deparava-se, na decisão da Praça dos Três Poderes, uma expectativa de acolhida à pretensão governamental. Mas esse resultado foi porfiado, no respeito à independência do Supremo e à força do seu possível dissenso, como aliás poderá vir à lume em outras decisões cruciais como, por exemplo, a do ganho de ingerência penal do Ministério Público ou da discussão do que seja a igualdade dos brasileiros frente à proposta da cotas no acesso dos excluídos à nossa universidade. O resultado adverso ganhava até os primeiros votos, a partir da posição nítida pelo respeito aos direitos adquiridos dos inativos a não contribuir para os pecúlios, como sustentou a relatora, ministra Helen Gracie. O desfecho final abre a amplitude da interpretação da Carta, no empenho entre a sede de mudança e de justiça social e a garantia de direitos assentados nas cláusulas pétreas da Constituição. Pendia, como pano de fundo desses votos, também o risco de baque crítico do orçamento, se se perdesse a contribuição prevista para os gastos da Previdência, com reflexos acumulados sobre o déficit público.


A decisão teve a ampla criatividade de um verdadeiro constructo legal, numa interpretação do que pudesse atender ao governo, sem mossa ao nosso Estado de Direito. Somaram-se, particularmente, nessa conclusão os contributos dos ministros Peluso e Pertence. Tratava-se de dar caminho ao imperativo da solidariedade, embutida na legislação previdenciária, de amenizar os ônus da contribuição, a favorecer o seu mais amplo rateio. O segundo desses magistrados sublinhava que não há direito adquirido em matéria de imposição fiscal, excluindo-se o caso de efetiva imunidade, que não se verificava na hipótese.


Coloca-se agora a Corte Suprema do regime petista, na escala em que nos referimos à Corte Douglas no New Deal ou à Corte Warren no Fair Deal johnsoniano, diante da tensão que pode enfrentar o Brasil dos próximos anos, no conflito entre a transformação social que está no âmago da cultura petista e a barreira que lhe oponha a Carta, cantonada na trincheira última das cláusulas pétreas. Estão entre elas a de direito adquirido, a da cidadania, a dos valores da livre iniciativa e a do pluralismo político. O que já ouvimos agora do Supremo, pelo ministro Joaquim Barbosa, é a admissão de que esses mesmos princípios fundamentais não podem impedir a realização da justiça, como a veja, aqui e agora, uma decisão da mais alta Corte do país. Respeitássemos sempre aquela barreira, avança o magistrado, em exemplo contundente, não teríamos saído do Brasil escravocrata. Permaneceria incólume o direito adquirido de então, de manterem os proprietários outros brasileiros, indefinidamente, nas suas senzalas.


A oportunidade retrospectiva do exemplo mostra entretanto como avança a consciência jurídica. No dito ''século das luzes'', no ímpeto da Revolução Francesa, Saint Just foi ao patíbulo, vitimado pela própria radicalidade que ajudou a construir, quando cunhou o moto da ''Justiça ou morte''. Não foi o Estado thermidoriano, entretanto, que sucedeu ao 14 de julho, mas, afinal, um Estado de Direito, ao mostrar que garantias se ganham num tempo histórico, e que as cláusulas pétreas aí estão nas Cartas Magnas para marcar o passo das gerações, nas conquistas em que se celebra a duração indefinida, de princípio, do seu pacto social.


O imperativo transformador da cultura petista começa a deparar o dique que a Carta garante como construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e pela dignidade da pessoa humana, a que estão indissoluvelmente ligados os direitos adquiridos. As cláusulas pétreas, por aí mesmo, edificam um regime para ficar visto, de princípio, como o ótimo para a nação que explicita a sua soberania e define o bem comum de seus membros. É inviável, e mormente quando estabelecemos ainda a premissa de uma ordem liberal - já que acolhemos a livre iniciativa, também, como fundamento da Constituição - imaginar procedimentos para a mudança continuada das traves do assentado como perene. Do abalo de uma, cai todo o atual edifício.


É no quadro de um padrão civilizatório conquistado, por inteiro, que o freio das cláusulas pétreas não é o de um contraponto entre a ordem social burguesa e a sociedade da mudança. Mas de como se transforma, em padrão definitivo da democracia, um jogo permanente entre o adquirido, num acervo da cidadania, e o que se conquista a partir daí. Nesse empenho inovaremos radicalmente, mudando as cláusulas pétreas, no abalo que é próprio só das revoluções e das crises do sistema representativo, por sobre a do simples governo? O Supremo do regime Lula, que agora mostra todo o seu perfil - provavelmente a Corte Jobim -, parece ter tornado nítido o que lhe permite o constructo legal para o imperativo de transformação social, no seu tempo e na sua exigência. Tal para que o afã da Justiça logo não seja o da anomia já.


Jornal do Brasil (RJ) 25/8/2004