A semana da epifania é a melhor moldura para a lembrança de José Paulo Moreira da Fonseca, falecido em começo de dezembro, deixando-nos a imagem plenária, na nossa geração, de uma vida do espírito chegada quase que à bem-aventurança. Não temos conjugação melhor do poeta e do pintor, numa incomparável conviviabilidade de perfil. Perpassa a obra, plástica e literária, o recado desta vigília de todos os amigos, reunidos na missa de 7º dia, no barroco de todos os mármores da Igreja de Santo Inácio. Vamos guardar esta presença leve, de scherzo, deste dom da comunicação, em que o reenvio entre o verso e a tela era a fórmula natural de um celebrar, da composição sempre luminosa de seu verso - traço, começado pela ''Elegia Diurna'' - ou das fachadas em que transformou em ícones o casario carioca.
O pintor da descoberta deste lance plástico está, hoje, no esquematismo de suas cores, na Documenta de Kassel. É uma fresta para o absoluto que se esgueira de seus quadros, na sabedoria rítmica, da meia porta aberta, da toalha no balcão, ou das persianas caídas, na régua de um solfejo imóvel. O corte das fachadas dobra, como brasões escuartilhados a simetria canônica de cores, em cenários de uma abstração especialíssima, timbrada sobre a percepção primeira da parede ou da janela. Fica o seu sinete, em filigrana. Nem o poema fugiria da cromática da luminosidade, o verso puxado a versículo, às matinálias, ou vésperas, onde a palavra pára no umbral mesmo do lampejo, fugindo à solenidade das cantatas ou das églogas. A performance da nitidez da ''Elegia Diurna'' fica no contraponto dos recados cifrados, do ''Claro Enigma'' drummondiano.
No nervo da geração de 45, José Paulo afluía a este novo discurso poético, do cânon do pós-modernismo, no verso caudaloso de Péricles Eugenio da Silva Ramos, ou Ledo Ivo. Os Prêmios Jabutis se acumulariam, na consagração de uma alegria do fazer, que perpassava pelo pintor autodidata, passado, incontinente, da mesa, ao cavalete, em um ver de júbilo, intensamente apolíneo. Impunha-se um refinadíssimo aprendizado do espetáculo da paisagem que se pode arriscar até ao maneirismo, como a tentação do excesso de reminiscência, na força com que o relevo diurno vincava o mundo. Ninguém mais à vontade que José Paulo em Florença, Veneza ou Roma. Não há surpresa de viagem, mas visita a um universo plástico, sabido e ressabido, caucionado na sépia de sua pertinaz meditação interior.
O reconhecimento nacional a José Paulo como quê se perde neste arquipélago, quase lascivo, das suas próprias réplicas, do grafismo em contracampo, da ponta seca trocada, em aliteração; da versatilidade da palheta, como da quebra do ritmo das suas estrofes. São sempre lampejos ou urdiduras, tudo ao contrário do dito bem acabado, ou entregue ao buril do último toque. Fazer foi o ritmo constante de um dia sem acumulações nem recados transferidos, pintor à beira do mundo, sem modelo nem truques de inspiração, nem crises de descoberta. Sua foi sempre uma tessitura virgiliana, do quadro ou do poema como delectação, que nasce da fidelidade à inocência primeira da mirada, e à força de sua manutenção, como pede a disciplina maior do contemplar.
Grafismo nítido, o de José Paulo, fora dos intimismos da nossa subcultura. Apontava à limpidez final, de luminosidade romana. Prestança da leitura inaugural, ou do contraponto das fachadas às paisagens, ou à tentação da figura humana, ao corte dos rostos, ao modelo do Fayoum egípcio, ou ao timbre cezaniano, com que o vegetal entra, nos seus quadros ao fim da vida, ao chamar de ''Naturezas'' a sua exposição-testamento. Artesão e arlequim, servidor dos muitos talhes deste seu ver de serventia alegre, sempre, despediu-se de seus amigos no sfumato da longa doença, a que soube antepor a plenitude, já exata, de seu ''alterego'' Alexandros Apolonios, no segundo volume de meditações intemporais.
Não encontramos na literatura brasileira experiência igual, de passagem a limpo de um eu de reflexão, e de memória, entregando-nos as chaves de seu ver de mundo e do anel da metáfora, de seu universo de cidades, palcos, lombadas, óperas, calçadas. Mais nunca textos incompletos, fundo de gaveta, meditações interrompidas. José Paulo nos lega um amadurecimento da obra, para além das convenções do seu êxito, ou da sua espera. ''Fabbro'' alegre, com o direito à própria intimidade, que é só a que se reconquista. Escapando às urdiduras fáceis do recado e da Academia, fez-se como de um mister de eternidade, e de uma última e tão difícil sabedoria de sua entrega.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 12/01/2005