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A implacável elegância de Sérgio da Costa

 

O retrato de Sérgio Corrêa da Costa que fica, logo, na memória é o de capa chibante, de espião em Buenos Aires, na elegância que só tem o diplomata, portando sua inquirição e seu mistério. Deixou o passaporte, e a identidade, para perscrutar do começo da intentona peronista, tão antes da nossa entrada na guerra de 45, e dos cálculos geopolíticos que amarrariam, à época, a Argentina à opção hitlerista. Da aventura nasceu, para publicação meio século após, a Crônica de uma Guerra Secreta.


Sérgio da filtragem última do donaire, e do corte canônico do perfil, com o que vimos, desenhou nossa presença no Prata, ou no eixo europeu crítico, em Londres e Roma, em Washington e nas Nações Unidas, do momento de afirmação do País, potência maior, no eco da voz de Oswaldo Aranha, da eloqüência viril, de par com a nitidez da mensagem.


O secretário-geral do Itamaraty e o ministro, nesta regra de ouro, tão difícil, da relevância externa, e em nosso chão, dava conta da primeira e mais madura das tradições da conduta pública brasileira que, de geração em geração, nos identifica lá fora com o Itamaraty. A elegância se nutria, ao mesmo tempo, da pressa do recado, percebido na nitidez do remate da vida e do quanto o escritor e o acadêmico fechavam o grande percurso do diplomata-estadista. É toda a riqueza de um testamento múltiplo, que as últimas obras marcam todas, em gêneros diferentes, a resposta de Sérgio à modernidade, como alerta à variedade de gêneros, curiosidades do espírito e vidas novas em seus cometimentos da diferença e da virtú da cabeça.


A obra histórica rematava-se nos textos em que Sérgio se transformou numa das nossas mais poderosas vozes do escorço do Primeiro Reinado. Das Quatro Coroas de D. Pedro I ao debate do monarca com Metternich e ao perfil descontraído em Brasil, os Silêncios da História. O diplomata ainda dividiria o rigor da pesquisa com a relevância dos negócios de Estado nos textos pioneiros sobre a diplomacia de Floriano Peixoto, discutindo a intervenção estrangeira na Revolta da Armada e a questão tão significativa quanto mal conhecida da Letícia, da fixação definitiva de nossos limites com a Colômbia.


O ensaio sobre as "Palavras sem Fronteiras" são, entre nós, talvez, o exercício mais rico e do quanto, no melhor sentido antropológico, a eleição profunda e misteriosa das expressões do universal da civilização impondo-se às culturas e às lógicas hegemônicas de nosso tempo.


Não temos talvez em nossa vida do espírito um experimento desta ordem - o das "Palavras sem Fronteiras" - em que a lingüística abriu-se tanto, por sobre os inventários genealógicos, a buscar as palavras-chave, apenas como manifestação-síntese de novos sentidos exigidos pelo avanço da tecnologia, ou da complexidade deste fim de século. Sérgio intuiu-as da prática da conversação, onde a sensibilidade própria a uma cultura encontraria o ajuste do dizer de um mundo interior, passados pela língua a outros universos de reconhecimento. Não é outra a idéia do multi-language, onde a expressão da modernidade procura nas múltiplas áreas da lingüística palavras sem fronteiras, como insight, ou "jeito", ou gestalt, ou allure.


Este Sérgio, da latinidade medular, o era pela arquitetura interna desse primeiro espaço mais largo da nossa identidade, que bateou como diplomata e assentou no dialogo. Sobretudo no grande diálogo em que nos deu de maneira única esta conviviabilidade entre a aventura da cabeça francesa e a brasileira, de que podemos tanto nos beneficiar neste ano de contatos entre a ABL e o Quai Comti.


A exigência, toda, deste primeiro cuidado do perfil, bem à frente do inimigo, com que, todos, o vimos, ainda, no coquetel da embaixada do Brasil em Paris, em junho último. Sabia pelo seu calendário exatíssimo que era o último encontro, na festa em que saía da vida.


Optou por fechar os olhos, frente ao mar, em Copacabana. Nem excesso, nem falha, do rigor e da maîtrise que são, afinal, o luxo da última elegância em que a morte não encontra o protagonista da entrega desatenta, nem iludido. Viveu-a neste extremo do repertório a que impôs o seu cenário, a sua cadência e o fecho surpreendentemente múltiplo e criador do Sérgio escritor, acadêmico, da pena porfiada até a finitude.


 


Jornal do Comércio (Rio de Janeiro) 14/10/2005

Jornal do Comércio (Rio de Janeiro), 14/10/2005