Não nos demos conta, talvez, internacionalmente, do quanto a vitória de Kerry no primeiro debate reabriu uma perspectiva de possível derrota de Bush em 2 de novembro próximo. O segundo debate criou uma situação de inércia, entre os pontos ganhos e perdidos de ambos os contendores, e passa-se a jogar tudo no encontro de Arizona. A pesquisa imediata do Gallup deu uma contundente vitória ao democrata, de 55% contra 39%. E de imediato se acirrou o radicalismo republicano, diante do vigor redobrado da ameaça. Um liberal, como Kerry, passa a ser o fantasma para o status quo: o candidato foi acusado por Bush - como quem diz um palavrão - de ser o mais "esquerdista" dos senadores.
Este retempero da campanha deixou bem clara a força, em si mesmo, de um poder de argumentação, e o ponto por ponto na histórica reunião de Miami em que Kerry foi até onde poderia a cabeça contar na decisão final do eleitor americano. Toda a excelência dialética do bostoniano repetiu-se em Saint Louis, mas já a mostrar a saturação do triunfo da inteligência e do raciocínio contundente. A regra objetiva que começa a surgir não é a de quanto um candidato convença literalmente a opinião pública, mas qual dos dois deixa mais à vontade o eleitor com o homem que irá à Casa Branca. Funcionam, inclusive, as gafes de Bush, o seu dom para o terra-a-terra, e para uma intimidade quase beócia com uma média de aceitação pública, que lhe permitiu segurar a derrapada do primeiro frente a frente com Kerry.
Não se trata inclusive mais, até, de saber-se qual o melhor chefe para um tempo de guerra, mas de como o fator congenial da confiança passa ou não passa. O imponente senador distancia, tanto quanto impõe respeito, vencendo claramente a pecha das contradições de posição, ou do "vaivém", no apoiar a guerra no Iraque. Vieram, como badaladas de certeza, as posições do democrata sobre a Aliança Internacional para sair do Iraque; o acréscimo de impostos, tão só para os mais abastados, com renda acima de 200 mil dólares-ano e o aumentar para sete dólares-hora o salário mínimo do país. Mas não se esperem grandes alterações na assunção do papel unilateral dos Estados Unidos na luta contra o terrorismo, qualquer que seja o ocupante do Salão Oval.
As mudanças eleitorais coincidiram, ao mesmo tempo, com o contundente debate avançado pela Academia da Latinidade, no coração universitário de Nova York, em Washington Square, sobre a hegemonia, e a manutenção, a prazo médio do multiculturalismo americano. Até onde os Estados Unidos continuarão uma grande pátria para as correntes imigratórias de todo o mundo, fundindo-se numa identidade básica com o país-continente?
É toda uma nova atitude nascida do trauma do 11 de setembro que está levando a nação a um redutor fundamentalista no reproclamar a sua identidade. E o significativo é que mesmo algumas das maiores cabeças hoje, do país, profundamente vinculadas ao liberalismo de Kennedy, Carter ou Clinton, começam a se preocupar com este reclamo por uma uniformidade na visão do país para si mesmo, como se retornada ao núcleo branco, anglo-saxão e protestante dos fundadores.
O debate de Nova York mostrou o prático silenciamento dos afro-islâmicos dentro do país, receosos de terem contra si uma presunção de simpatia com a cultura "do outro lado". Evidenciou-se o começo de consciência dos mexicanos, de que poderão temer uma reação do país que ora as acolhe, contra a força de seu bilingüismo, de seu potencial demográfico e, pois, a possibilidade, em meio século, de criar uma nação bifurcada, que repetiria, de forma temporã, o quadro do Canadá. O professor Samuel Huntington tem sido, hoje, o bastião desse novo cuidado dos Estados Unidos, a ver na latinidade do país, pela primeira vez, uma expressão não necessariamente assimilacionista de sua cultura, tal como aconteceu, multissecularmente, com as levas de imigrantes de todo o mundo, que sempre se reencontraram sob a nova bandeira e a ela aderiram numa força espontânea da história.
De toda forma, o debate colocou em causa a própria subsistência de um multiculturalismo frente à nação que Bush quer levar à "civilização do medo", que se se repartiu em focos praticamente incontroláveis, de resistência aos Estados Unidos, e de manutenção de novas "Guerras de Cem Anos", frente ao inimigo tão múltiplo quanto invisível. Já surgiu, a partir do segundo debate dos presidenciáveis, inclusive, a inquirição, neste momento, com um impacto devastador sobre os republicanos, de que o governo passaria à conscrição militar, para fazer face à insurreição do pós-Iraque.
De outra parte os democratas - e Huntington, por exemplo, se declara um inimigo de Bush - não deixam de reconhecer uma quase coerção identitária interna no país, um dever novo de saber quem é - e, pois, de passar a limpo a sua identidade - diante da história retesada que impõe o papel novo da hegemonia, urbi et orbi. Não há mais ilusões quanto às dificuldades que terá Kerry na Casa Branca, ao que, ainda antes do 11 de setembro, se imaginava como lógicas naturais ao internacionalismo dos Estados Unidos.
Percute por igual em ambos os partidos a resistência a subordinar as tropas americanas, em qualquer violência contra os Direitos Humanos, como a tortura de Abu-Ghraib, a um Tribunal Internacional, a deixar o papel dominante, em qualquer força internacional, para o pós-Iraque, a dissociar o terrorismo de uma latente causa do Islão, aceitando-se o risco terrível, a prazo, dos choques de civilizações. A Europa de Chirac, Zapatero ou Schroeder compõe hoje um eixo ainda de resistência a esse engolfamento geral. Mas entra em crise a visão da Europa como sede do pluralismo ocidental, assim entrevista antes no 11 de setembro e ainda na fase de ouro da integração do Velho Continente. Neste quadro, a Latinidade não é apenas o interlocutor aberto ou soft, diante do colosso hegemônico. Hoje ela percebe, frente ao impasse crescente com os chicanos, como mediadora, também, dentro das muralhas americanas.
A reivindicação cultural passa à frente, quando o mundo hegemônico acelera a sua realpolitik. E justamente pela própria força em que o multiculturalismo se identificou ao do aríete da Latinidade nos Estados Unidos, as ditas reivindicações periféricas que encarna exemplarmente o Brasil encontram outras pautas que a do desenvolvimentismo, ou da luta contra a fome. E é incomparável a voz de Lula para fazê-lo, a partir do país do cadinho identitário único no Continente. O que primeiro se invalida na "civilização do medo" é o direito à diferença. Mas é dele que depende, por inteiro, não sermos engolfados - como aventado na conferência de Nova York - por um sem-fim de "guerrilhas culturais", no mundo dos simulacros a que podem se encaminhar os Estados Unidos. Quando ser liberal torna-se um perigo extremista a diferença é subversão, como reitera a opção Bush, em 2 de novembro próximo, para o primeiro voto presidencial após a queda das torres.
Jornal do Commercio (RJ) 15/10/2004