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A guerra dos mundos, afinal?

 

Por que só agora Bush alardeia a repetição de possíveis ataques abortados aos Estados Unidos, na esteira da queda do World Trade Center? Esteve nesta mira, e seis meses após a catástrofe de Nova York, o mais alto edifício da América, nos seus 334 metros, o Library Building, em Los Angeles, torre coruscante esperando um novo avião suicida. A persistência comprovada da Al-Qaeda explicaria hoje a síndrome de pânico, e o horror, de toda entrada de estrangeiro nos Estados Unidos, na trituração dos vistos e das revistas nas cancelas de acesso ao Império.


Não temos paralelo, na história das hegemonias, de força tão extraordinária e de poder limite, ao mesmo tempo crispado pela ameaça, vinda de qualquer parte, para repetir a catástrofe do W.T.C. O princípio da fronteira hermética tornou-se inarredável pelo discurso sobre o "Estado da União" de Bush, a 31 de janeiro, validando a promessa do muro com o México, em contrapé a esplêndida tradição dos founding fathers, a fazer dos Estados Unidos o paraíso universal dos migrantes. Deparamos sim a Festung Amerika. A nova fortaleza provê-se das muralhas literais, crescentes, que protegem o seu território.


São estes os dias, também, em que Bush não logra mais prorrogar o Patriot Act, que lhe deu todos os poderes excepcionais de refazer o mundo ao espelho do Salão Oval, à queda das torres; à invasão do Afeganistão e do Iraque; à rede de espionagem permanente da CIA e à reiteração da necessidade das torturas, ainda que "por métodos inovativos e de recuperação rápida". É um governo forte, o que mostra o quanto cuidou da sua segurança, desmontando os novos atentados? Ou o que se convence da inviabilidade de manter essa postura, quando a prevenção do pior acaba por atrai-lo, ainda, em maiores proporções? E quantos novos candidatos a mártires por Maomé nasceram agora do que se viu como agravo frontal e blasfêmia ao Profeta? Fomentado por governos, os protestos saíram de controle pela raiva de povos trazidos ao irracional de seu inconsciente coletivo.


Mais grave ainda, entretanto, é o quanto a exasperação desta violência levou, também, as cabeças do Ocidente mais desenvolvidas a virar a mesa. Os dinamarqueses tomam-se agora da pulsão de um outro fundamentalismo, negando-se a pedir desculpas pelas charges, no que representaria a demissão do espírito crítico e da liberdade de expressão, garantida como a mais ciosa das conquistas do mundo das liberdades do nosso tempo.


O abismo está aí, e agora, e aberto, no mais insuspeito dos rincões, e no âmago do melhor, no país de Hamlet e do rigor da dúvida sempre a favor do homem, num mundo exposto a civilização do medo, esperando, à la Kafka, por Bin Laden. Esse que como mensagem de ano novo oferece na vertigem dos delírios, mas com razão e sistema, que lhes é próprio, esse novo Tratado de Tordesilhas. Saiam os "marines" de Bagdá, e de Cabul e adjacências e poderão os americanos dormir, sem perigo da queda de seus arranha-céus, a cuja investida se preparariam tantas das novas milícias do terror, reaquecidas pela suprema injúria a Maomé.


A ira contra a provocação baixada nas ruas revitalizou a frente única ocidental, contra a resposta islâmica, tanto quanto, a verdadeira chance de contê-lo, ainda a pouco tempo, decorreria de uma clara e democrática contraposição entre Washington e a União Européia, no clamor pelas retiradas das forças do Iraque; contra Abu Ghraib ou Guantanamo ou pela validação de um programa de Direitos Humanos, a partir do reconhecimento do Tribunal de Haia. Racha-se hoje o Velho Continente, pela tensão entre a defesa de dois direitos à liberdade: a da prática dos cultos, e do seu respeito e o de expressão, na crítica da imprensa e seu debate, sem concessões diante da opinião pública.


E como pensar a volta ao melhor do avanço do nosso tempo, sem a defesa destas conquistas da razão, que a Dinamarca hoje repta na sua inteireza, ou na renúncia a todas as realpolitiks da conciliação internacional, para defesa do melhor do Ocidente? Mesmo a bem de afastar-se uma pseudo guerra de religiões? A renúncia ao direito de crítica sacramentaria, por um erro sem volta, o efetivo desmonte da lógica das hegemonias em favor, de vez, de um mundo do pluralismo reclamado pela autêntica e efetiva globalização. Esse caminho passa tanto pelo repúdio à queima das Embaixadas de Hamlet quanto, de vez, pelo castigo de Abu Ghraib e de abolição do Patriot Act.


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 24/2/2006