O Tribunal Penal Internacional acaba de dar passo inédito na garantia de um novo Estado de Direito no mundo global. Considerou criminoso contra a humanidade o Presidente Bashir, do sudão, e determinou a sua prisão. A iniciativa não tem precedente quanto ao governante em exercício e acusado de genocídio. O caso mais próximo é do antigo Chefe de Estado da Iuguslávia, Milosevic, a só de fato ser objeto de detenção e tranferência para Haia, após a sua queda do poder. Foi também como cidadão anônimo, escondido em Belgrado que Radovan Karadzic, da Bósnia-Herzegovina, está hoje na prisão holandesa.
A decisão da ONU não exclui uma missão de captura, que acarretará um clássico conflito militar diante da resistência do governante sudanês. De imediato, a represália de Bashir consistiu em banir do terrítório muitas ONGs, de há muito ligadas ao trabalho assistencial, crescido após os massacres continuados em Darfur.
A cumprir a sentença deverão as Nações Unidas, também em medida inédita, excluir o país e expor-se à devastação, em represália, do auxílio internacional que tem permitido a sobrevida da população castigada no seu extremo Oeste? Ou aceitarão uma condição de trégua em que o governo sudanês proponha uma nova abordagem internacional para o problema de Darfur?
Expõe-se, ao mesmo tempo, a presente debilidade da União Africana como mediadora do impasse. Os vácuos de poder no mundo de após o 11 de setembro permitiram condições de verdadeiros no men´s land com o que hoje assola a Somália, de intervenções ocidentais futuras, governos paralelos e reaparecimento da pirataria, única neste último meio século.
De toda forma, também, numa síndrome parecida à do ex-presidente do Paquistão, o general Mufarrej, pesa a realpolitik na estratégia global anti-subversiva, num refreio entre a luta contra a "guerra de religiões" e o avanço de uma defesa incondicional dos Direitos Humanos, urbi et orbi. Mais ainda, a criminalização objetiva do genocídio e a eventual prisão de Bashir abrem o caminho para a retomada do problema curdo, de uma aceleração de pauta destes reclamos, a cometer a integração turca, e o grande avanço de uma possível democracia no Mediterrâneo.
É claro que o progesso da consciência mundial faz-se, exatamente, desses confrontos com a realpolitik de que é exemplo a condenação do presidente sudanês. Mas ela se desfecha em área sísmica do presente equilíbrio internacional. Não auguram soluções por intervencionalismo abrupto descido do páramo das Nações Unidas. Bashir ganhou o teste de força da resistência imediata do controle de suas Forças Armadas. A vigência crescente do "crime contra a humanidade" não foge a tensão entre o avanço de uma consciência internacional e o jogo imediato das soberanias. Bashir se beneficia de um nervo geográfico, distinto das plagas estéries da Somália. A trégua objetiva não deixará, entretanto, de colocar em causa esse novo dado do mundo que emerge. Os dossiês das inumeráveis denúncias de genocídio já definem uma contagem regressiva dos antigos fatos consumados para o futuro de nosso tempo.
Jornal do Commércio (RJ), 20/3/2009