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Ganhar e governar

 

O vigor da popularidade de Lula atravessa momento em que um começo de resultados se torna essencial para a renovação da esperança. Na verdade, trata-se da mostra, mais que de um plantel de êxitos, do toque de confiança personalíssima que lhe assegura essa vitória única da fé no presidente, pelo mínimo que lhe exige o povo, a continuar o enlevo.


Lula responde a um imaginário selvagem de que é historicamente o único fiador e por ele segura o governo, à margem das notas que se dêem à sua equipe. Esse amuo das elites, a querer turvar a boda do povo, vive o rebote da portentosa subida ao Planalto, culminada com a festa no céu da posse. É não se dar conta da solidez inaudita, do laço básico da boa virtude política, que é a identidade do governante e do governado. Foi o Brasil dos destituídos de todo gênero que entrou com Lula em palácio e continua lá no seu sonho de poder. Experimentamos este ''sentir-se governo'' pelo país do outro lado, frente ao sistema responsável pela mais obscena distância entre ricos e pobres, na entrada do novo século.


Mas o PT que ganhou, e com competência exímia, sabe governar? É possível, numa lógica natural, extrair da disciplina da mobilização eleitoral o desincumbir-se do comando político; o submetê-lo a uma programação prévia; o subordinar recursos a objetivos; o emprestar-lhes, nessa triagem, as prioridades essenciais, do perder os anéis para que fiquem os dedos; de fixar-se de onde se parte para definir, sem estrépito, ao onde se pode chegar.


Essa competência não faltaria a um partido que viveu o realismo, as estratégias, a boa malícia política do fazer jus à Presidência. Mas o projeto de conquista do Executivo não é, necessariamente, o de administrá-lo. E o contraponto começa pelas próprias premissas em que a vocação do partido e a sua história continuam o que FHC chama a ''arte da política'', ou seja, de tornar concreta uma proposta de mudança, pesando todo o relevo das contradições sociais e os pacientamentos da transação continuada com o sistema.


O primeiro passivo é o da possível ortodoxia excessiva com que um projeto partidário de alto teor ideológico como o do PT enfrenta esse anticlímax de saída, que pode ser visto até como traição ao projeto justificativo da chegada ao poder.


Viveu, por aí mesmo, Lula o batismo dessa perplexidade, na resistência encarnada por Heloísa Helena, ao lado de Luciana Genro e Babá. Mas tal férula não fez verão. Nem as dissidências em nome da pureza alastraram-se sobre o primeiro arrepio, tal como desapareceu a idéia de um PT autêntico, ou da migração dos incorruptíveis para as facções em que a radicalidade fatia forças políticas e as condena ao gueto das últimas insatisfações.


No campo, entretanto, do embate político concreto, e para valer, o governo Lula enfrentou o embate torvo da inércia burocrática; do enorme aparelho já instalado no poder e se tornando, de governo a governo, o dono efetivo das agendas internas, do legalismo dos bloqueios, do que possa vingar e frustrar-se. Tal embate se acirraria, ainda, no caso do PT, por força da disciplina dos seus quadros, a se manterem para além das entressafras eleitorais. É equipe coesa, e aguerrida, para assumir a administração pública, ao contrário dos partidos conservadores, que terminam, por sobre o nominalismo das investiduras, deixando nas mesmas mãos de sempre o volante do governo.


Começa, assim, no governo Lula essa outra luta surda entre os burocratas, e na sua carga ideológica, os verdadeiros comissários, no sentido amplo com que a Revolução de Outubro, em 17, identificou esse grupo coeso, que assume o poder compondo todo um corpo político e uma disciplina férrea de lideranças. É possível, de ministério em ministério, um levantamento, hoje, da queda-de-braços em cada órgão, que não se evidencia, entretanto, na amplitude esperada, pelo entremeio em que o clientelismo introduziu-se na repartição de cargos, a partir dos partidos aliados. Atrasou-se uma mudança qualitativa, no empunhar-se a coisa pública a partir do aparelho tripulado nos últimos oito anos pelo situacionismo tucano.


Chega-se aos 500 dias do governo Lula sem, entretanto, um veredicto final no jogo desses entrechoques, imputáveis ao ''atraso da máquina'', na passagem à ação nítida por um novo Executivo no seu perfil inteiriço, cobrável pelos eleitores. Ficaria, pois, em suspenso num primeiro momento o até onde, nessa transição de governo, está em jogo, também, o programa da mudança, aos olhos dos eleitores e na convergência dos impactos finais, análogos ao da urdidura da campanha de Lula.


O segundo Ministério venceu as perplexidades na coesão do ponto de ataque para o recado da diferença do Planalto. Aí está o Ministério do Desenvolvimento Social, com Patrus Ananias, integrando o Fome Zero, a assistência e aproveitando os seus suportes. E o Ministério das Cidades compõe a melhor ofensiva contra o desemprego, na voracidade da mão-de-obra que pedem o saneamento, as estradas vicinais, o mutirão habitacional. Muito da carta na manga, antes de setembro próximo, está com Olívio Dutra. Afinal de contas, o plus em 78% da nossa população fica sobre o impacto da sua pasta. E foi esse o primeiro Brasil que se viu na ''festa do céu'' da posse petista. Lula voltou, agora, na China, a levantar a platéia à sua frente. Essa que só quer repeti-lo aqui no mínimo que precisa para manter o encanto - para além do verbo.


 Jornal do Brasil (RJ) 1/6/2004