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Ganhamos a Copa

 

A catástrofe na Alemanha marcou pontos inéditos no sentido do amadurecimento da cultura brasileira. Delineava-se, de saída, o pior presságio sobre o desabar da auto-estima nacional, pelo horror da derrota ante a França, e seu impacto sobre o paísão colado na TV. De repente, não mais que de repente, nos soltamos do fantasma. Não era o Brasil que estava em campo, mas um bando de profissionais mastigando o hino, dispersos em toda série de clubes bilionários da afluência européia. Ou a pedir já o passaporte estrangeiro e ir à lobotomia da lembrança nacional.



O Dunga que ora vem à nova seleção é claramente de uma virada de página diante dos facilitários da glória com que buscamos de maneira tão pomposa o hexa. É um Brasil que volta sem empáfia à confiança no que seja o seu futebol e os valores de começo, fora do eterno retorno dos bonzos gordos do Real Madrid ou do Barcelona. O futebol não saiu da tela interna dos brasileiros, e aí está a fiabilidade sadia com que nos debruçamos sobre os campeonatos e o despertar de novos craques.



Não se abalou de forma alguma a confiança interna de que continuamos intactos no sentimento de melhores do mundo. E mal nos demos conta dos estoques de guirlandas, fogos, impressos, camisetas, pendões antecipados para a festa-monstro da vitória em Berlim. As guirlandas de rua continuam nas ruas do país. Não se as retira no desencanto, mas aí ficam à chuva e sol na certeza última de que a equipe de Dunga vai à sua verdade em 2010.



Não nos demos conta, e é fenômeno estourando após a última Copa, do distanciamento objetivo que as nossas estrelas assumiram, diante do país das peladas de origem, frente aos deslumbres do dinheiro europeu à compra dos nossos astros brasileiros. Nenhuma outra equipe pôde entremostrar 22 dos 23 jogadores, todos craques europeus, e alguns já prazerosamente acenando a nova binacionalidade.


 


Raio de Júpiter


 


Nenhuma mossa, de qualquer forma, embargou-nos o culto divino, antecipado, nos mínimos detalhes em que a cintura de Ronaldo, ou os calos na chuteira, ou ungüentos nas coxas de Robinho ganharam as manchetes nacionais e a vinculação de nossas glórias aos seus percalços anatômicos. Pendeu literalmente a nossa esperança - e as suas certezas finais - desta devolução dos deuses à terra estrita. Aguardamos a nova entrada em campo, como a das divindades que pisassem, de vez, ao gramado e destroçassem os pobres mortais do outro lado. Só há a temer o raio de Júpiter sobre os músculos dos pentacampeões, jamais a temeridade de um gol adversário. Não temos precedente neste estado encantatório dos 178 milhões de brasileiros, com o terceiro consumo mundial de televisores, e a taba em torno do vídeo, de um país que torce, aplaude e blasfema junto.



Nos cárceres de São Paulo, policiais e Marcolas esqueceram as grades, na sideração sem retorno. Mas, o que afinal se confirmou em campo foi esse desempenho sonâmbulo da equipe sem nervo, nem nexo, perdida a juntura que faz a glória para além do cheque e das saunas de ouro. Saímos da Copa com a consciência de que o primitivismo cívico do país tolerará até a catástrofe os ídolos deslumbrados, tatibitates nas suas frases óbvias, ao microfone, e já esquecemos o monocórdio de semianalfabeto, com que Cafu leu a mensagem de combate universal à Aids, antes da partida desastrosa.



Não se lhes peça vibração, que distante está a pátria e, afinal, a cada um será poupado o retorno, no coletivo do ônibus ou do avião da vergonha. Ou a dureza do silêncio único em que se empederniu o país todo após o apito final. Vão ficar como a memória lamentável a trivialidade da face de Ronaldinho, ou o "pois é" de Ronaldo, ou o comezinho dos que, de vez, acomodam-se à alma pequena quando o salário vale a pena. Fique como consolo da nossa tragédia cívica as contorções em campo, na lamentação da dignidade, de José Roberto, Lúcio ou Robinho. Mas já como monumento ao passado brasileiro. Forra ao 1x0 mais não há. Nem se retorna do nível de profissionalismo empalhado atingido pelos nossos craques à expressão de um desempenho ou de um orgulho nacional. Nem sobraram as torcidas de todos os paetês e caras pintadas a beijar os pés, senão os degraus, pisados pelos mais caros do mundo. E todo o país ficou atrás do primeiro grupo que descompôs os melindrosos, no começo da vaia que não tem volta.



Vimos como as prisões de São Paulo receberam, há semanas, os vídeos para a torcida na Copa do Mundo. Cumpriu-se a exigência de Marcola com os aparelhos pagos pelos bandidos para que continuasse, nas cadeias, a mesma onda brasileira de consagração do hexa. Só se reiterava, no laço final na marginalidade, o vínculo todo do país com os brios do auriverde pendão.



O fracasso do hexa importa uma virada de página, no ratificar-se o orgulho do país pelo sucesso de bisonhos e nédios expatriados. Um jogo destes envolve um sentimento que explode, ou não. Não sabemos se a China vem aí. Mas o país não se reconhecerá em futuros Ronaldinhos de Xangai, jogando no Barcelona ou no Real Madrid.


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 28/07/2006

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 28/07/2006