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Europa sob medida para Bush

 

Nunca se vira, até os 2 x 2 contra o Togo, um mal-estar da França com seu time na Copa, numa verdadeira metáfora do clima de pessimismo e incertezas que rondaria, neste momento, o próprio futuro do país no grande horizonte europeu. Claro, o gol de Zidane contra a Espanha abriu nova clareira. Mas a lamentação inicial do povo francês contrastava com a incrível mobilização alemã, que não joga só no próprio chão. Faz destas partidas, inclusive, o símbolo mais exuberante deste país que, de vez, superou a dificuldade, de mais de uma vintena, em absorver o seu Leste, empobrecido durante toda a Guerra Fria. O desencanto francês inicial, passando do jogo à política, deflagrou-se na vindita única do Primeiro Ministro Villepin, apostrofando o líder socialista Xavier de Holande, e acusando-o, sem rebuços, de covardia, senão de desonestidade política.



Era como um último desabafo final da frustração continuada em que o governo, desde a queda da lei de facilitação do primeiro emprego, vem tornando sombria a sucessão de Chirac, e, de vez, a truncar toda a esperança do seu atual Chefe do Executivo. Villepin troou na Assembléia, em Paris, meneios da juba, olhar poderoso, todo aplomb do delfim do regime, ainda há um ano, seguro no savoir faire de futuro, mesmo fosse o único pretendente sem ter merecido, como parlamentar, uma prévia sanção dos turnos. . Seu antecessor, Raffarin, não lhe poupa crítica, do quanto os gestos de Narciso, somados à vitalidade da tribuna, deixam-no à exposição dos adversários, e ao jogo demasiadamente ostentatório para ganhar, de fato, a liderança do machucado situacionismo francês.


 


Rota da humilhação O apolíneo primeiro-ministro pediu desculpas e redesculpas aos adversários socialistas no dia seguinte do ataque, cumprindo a rota da humilhação assumida como quem sabe que sai de campo. E Sarkosy, o rival dentro do sistema, permanece no governo na segunda posição sem deixar dúvidas de como assumirá a direita do país no próximo pleito. Já a chama de centro-direita, no clássico eufemismo da conciliação do pretendente ao poder. Insistirá - que ninguém lhe faça mossa - na execração ao extremismo e ao perigo de Le Pen, anti-imigração e anti-Islão, no pano de fundo em que, hoje, se encastela o reacionarismo sem volta de 20% dos franceses.


 


Sarkosy sabe e assume a aspereza da campanha, a partir do exotismo do próprio nome. Mas não deixa dúvida da amplitude da sua realpolitik, e do que mais importa ao último denominador do conservadorismo. O compromisso da França e da Europa é com os Estados Unidos tanto quanto, afinal, liberdade se rima com mercado, e a prosperidade francesa pode prescindir do que resta do reformismo assistencial ou securitário da velha esquerda, sem qualquer renovação ideológica.



É num quadro de arquivamento da alternativa que o eleitorado do Primeiro Mundo europeu aposenta toda a utopia. O ser a favor ou contra o que aí está entrou no banho morno da inércia das maiorias milimétricas que, neste momento, deu uma vitória ao centro-direita de Merckel em Berlim, como ao centro-esquerda de Prodi em Roma. O "Velho Continente" ensurdece a toda percussão ao próprio futuro da Europa, quando o ideal da comunidade do Carvão e do Aço se pensava como o de protagonista do Ocidente ágil e autônomo, a pesar no outro prato da balança frente aos Estados Unidos.


 


Liderança socialista


 


Nada mais longe da velha "Europa dos 6" do que o alambrado dos 25, onde os novatos já vêem todos marcados pelo compromisso com Washington, como se, dos países bálticos à Hungria, se tratasse apenas de um volver à direita da antiga satelitização soviética. Na França começou a morrer o velho propósito do Mercado Comum original, tanto o "não" do referendo à Constituição Européia bloqueou as melhores esperanças de efetivo e orgânico protagonismo continental. E é nessa mesma ladeira que Segolene Royal, a mulher de Xavier de Holande, ganha todas as platéias, assumindo a dita liderança socialista, como discurso simétrico ao conformismo de Sarkosy. Leva, agora, milhares aos coretos desbotados do Partido Socialista com os chavões de que o país "precisa de um projeto à altura do seu porte histórico", ou de que a França de sempre "saberá em quem votar agora".



A unanimidade quanto à desgraça de Villepin vai mantê-lo no governo, pelos próximos meses, pela absoluta falta de qualquer opção de Chirac, para realinhar a resignação à próxima ida às urnas. Fica, de qualquer forma, como herança das cicatrizes do Primeiro Ministro o único gesto objetivo em que, por instinto, a França da intervenção do Estado, e da tradição dos reformismos sociais resistiu ao projeto do "primeiro emprego", como pedido pela lógica última da globalização hegemônica.



A eleição de 2007 não vai levar as esquerdas à estaca e ao debate, em que um socialismo reformista possa surpreender o Salão Oval. Todo diagnóstico é de ter a Europa perdido o sonho da primeira aliança entre Paris e Bonn, há uma vintena, e se amortalha hoje no aquietamento do "Velho Continente", na dissecação de Rumsfeld.



Tanto o futuro americano não deixa em dúvida a continuação da presença dos marines no Oriente Médio e a luta contra os "eixos do mal", tanto as últimas frases do Presidente austríaco na recentíssima conferência de Viena engoliu qualquer protesto quanto a Guantánamo, Abu Ghraib ou a prevalência dos direitos do homem para vencer uma "civilização do medo".



Fiquem os pecadilhos americanos, que a Europa continuará tributária dos Estados Unidos. O sucesso do Plano Marshall garante uma hipoteca histórica, ainda não vencida, ao que o Ocidente, aquém-Atlântico, dê a última palavra sobre as liberdades. A segurança do mundo afinal passaria mais pelo Salão Oval do que pela ONU.



Nem pode a política dos Direitos Humanos levar, na sucessão de Kofi Annan, à ruptura dos Estados Unidos de vez com as Nações Unidas. E a Europa não será a noiva da esquerda, esperada de Zapatero, para escapar ao talhe sob medida para a política de Bush.


 


Jornal do Commercio (RJ) 30/6/2006