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Estado de direito e democracia selvagem

 

Vivemos nestes dias uma crise paradoxalmente sadia do que seja, nos seus perigos e promessas, o avanço do Estado de direito entre nós. Mas a chegar já na semana que se abre à nova ameaça-limite: a do vácuo jurídico dos poderes com a paralisação do Congresso e a entrega de decisões críticas ao presidente do Senado. E, ao mesmo tempo, do afastamento de funções dos personagens do Judiciário neste embate, pela entrada de férias simultânea do presidente do Supremo e do juiz De Sanctis da Vara Criminal do julgamento de Daniel Dantas. O cenário se esvazia de todo com o afastamento compulsório do delegado Protógenes, na investida tonitruante de sua operação Satiagraha.


É toda a turbulência de um desafogo básico das delegacias policiais, avançando gulosamente sobre o espaço que o governo Lula, de saída, lhes franqueou como nunca na República, para a busca da prova e a amplitude do inquérito hoje no Brasil, liberado dos interditos do país dos poderosos e dos privilégios de foro.


Seu corolário, entretanto, pode ser, para nosso estarrecimento, a irrupção do Estado policial na seqüência do Brasil da escuta, em que hoje já estamos todos submergidos. São meio milhão de telefones grampeados no Rio de Janeiro, aparelhados para, segundo o Ministério da Justiça, a mais "científica e perfeita das gravações". Esse risco lôbrego mal começa, e dando origem ao novo e tenebroso crime contra os direitos humanos, ou seja, o tráfico do grampo, capturando, de vez, a intimidade do cidadão a pretexto da amplitude impune aberta ao seu telefone.


A Constituição do doutor Ulysses, aliás, pode remediar essa violência para qual, entretanto, não acordou a cidadania sobressaltada desses dias. Ou seja, a de impetrar, com a mesma rapidez do habeas corpus o habeas data para que conheça a vítima os registros de dados de entidades governamentais. Num país, na iminência da escuta generalizada, há que desentranhar esse instrumento das liberdades, nascido para prevenir-nos dos arquivos do governo militar e, hoje, a nos poupar de uma presunção generalizada de culpa. Devassa-se a dignidade da pessoa, em nome de uma rede universal e muitas vezes absolutamente arbitrária de alegada prevenção de delitos pelo sigilo da averiguação.


A crise é a das que mais fortifica o alicerce do nosso compromisso sem volta com a democracia profunda. E vai de logo a outro perigo brotado nesses dias. Ou seja, a do juiz De Sanctis que repta a Lei Orgânica da Magistratura, entendendo que pode falar à imprensa sobre processo que esteja julgando, fora de seu núcleo sigiloso, para desde logo "trazer o povo" ao acompanhamento do feito.


De fato, é pelo ineditismo dos precedentes que viramos, ou não, a página da nossa consciência coletiva. E não temos paralelo desta infringência confessa do âmbito e dos limites do poder de julgar. Não podem os magistrados confundir a convicção cívica com a razão jurídica, e trazê-la, de imediato, à mobilização popular. Nos tropeços do avanço da democracia profunda, o avanço inarredável destes dias é o de, de fato, distinguirmos o Estado de direito da democracia selvagem.


Jornal do Brasil (RJ) 23/7/2008