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Esquerda e tirania utópica

 

O futuro alinhamento eleitoral não vai apenas, no voto-opção, ao confronto entre o governo e o tucanato. Encarna as fraturas de repúdio a Lula, nascidas da extrema esquerda brasileira. Paga aí o Planalto, num paradoxo, o preço da sua política de vigências políticas e de manutenção, necessária, das maiorias para o avanço do programa de mudança. E tal para vencer o enfraquecimento do PT e das garantias de que permaneceria o roldão político da vitória de 2002 e a legenda originalmente responsável por esse resultado.

 

O que vemos é a ruptura entre o consenso da militância e as dúvidas que começam a levantar uma intelligentsia do partido no seu seio. Esta se expõe aos radicalismos inevitáveis de uma insatisfação com o teor das mudanças, conforme um ideário rigoroso de esquerda. Acredita num modelo de superação do capitalismo, sem, entretanto, a visão global do processo histórico de agora e, sobretudo, da amplitude real das contradições da crise internacional dos nossos dias.


O que mais preocupa, porém, não é uma riqueza de enfoques diferentes sobre a dependência internacional ou do que, aí, seja o advento da nossa crescente autodeterminação econômica. O que espanta, sim, é sofrer da mesma contaminação moralista do oposicionismo, em que à prática política se substitui a integridade utópica, num clássico abandono da percepção crítica do real concreto de nosso tempo.

 

A práxis de Lula e seu sucesso vai a esse novo aliancismo político - insuportável para a intelligentsia petista original -, a trazer o PMDB para o bojo do poder e compô-lo em novas mediações que assegurem a efetiva vigência de um processo de mudança. E tal, para os mesmos puristas, vista como conspurcações, transigências, em que o governo se transforma em mais um anódino e inodoro regime do status quo.


Esse inconformismo de esquerda juntaria hoje, no seu repertório, a defesa da radicalidade socialista ao imperativo ecológico, saído do nouveau-richisme clássico de todos os recém-chegados a uma efetiva e global política de desenvolvimento. Não é outro o racha de Marina, na proteção ambiental desatenta ao que sejam, de fato, as prioridades desse empenho básico. E, aí, às exigências da justiça social, antes da canonização do paraíso amazônico, nesse clássico descarte da práxis e suas mãos sujas, responsáveis pelo "aqui-e-agora" do desenvolvimento sustentável. Os verdes se somarão ao PSOL ou, quem sabe, já no vício das miniminorias, irão a candidaturas paralelas ao próximo pleito.


A maturidade do nosso desenvolvimento nos pode permitir as barricadas de uma radicalidade perpétua em que se abrigue, em toda a sua generosidade da alma, uma visão ingênua da transformação coletiva e do quanto venha a depender tão só de um voluntarismo pertinaz das intenções. Deparamos aí até, quem sabe, pela validade desse contraponto, o estuário da consciência bruta da mudança, que já se descartou desse elitismo de esquerda no país e tem no "povo de Lula" o ímpeto do voto-opção. E a intuição grossa que faz o futuro, e não os refinos ou o faquirismo da radicalidade.


A condenação do presidente pelas esquerdas da detergência histórica permite, desde já, outro salto adiante. Não só a superação do que, de vez, não queremos, mas, sobretudo, da tirania utópica sobre o país que construímos.


Jornal do Commercio (RJ), 8/1/2010