O quadro das expectativas do governo Lula enfrenta, com a crise Waldomiro, risco muito diverso da clássica decepção com mais uma equipe do Planalto que não escape ao ferrete da corrupção. Um governo da mudança e intrinsecamente disposto à transformação social é também o dos olhos de ver a realidade de onde parte; e do que seja a estrutura social em que se enraíza.
Ledo e vão é o propósito de pensar que se a altera tão só pela vontade dos homens, diante do portento dos interesses a que pode servir o poder. O alarido do escândalo vem do Brasil antigo. O discurso ganha a rua como uma inevitável forra desse establishment que começa a ser apeado do poder, e atira o petardo tardio de uma nivelação das desesperanças, a querer atingir a força inédita da mobilização que levou Lula ao Planalto.
Uma derrubada, ou não, de José Dirceu esconde a armadilha mais grave, que é a de emaranhar-se o governo no poço sem fundo do apurar as propinas e verbas paralelas, como rezem o opulento dos laudos e das investigações, a abater mais um vendilhão do bem público, como manda a erosão da memória e a repartida da mesma síndrome. Quem ainda se lembra do escândalo dos “anões” e guarda a manchete do primeiro dia? À consciência coletiva que emerge pouco se lhe dá, afinal, o desfecho do horror, seus recursos, contra-recursos, e voltada afinal ao fastio público no affair Waldomiro. Com efeito, 47% dos entrevistados pela mídia nem sabem o que seja o escândalo.
Claro, não há como fugir-se à investigação rigorosíssima e, aí, à canga do déjà-vu . Se o país velho votou em Lula, quem o elegeu foi a nação do outro lado, que tem os seus critérios de avaliação do presidente, e não desmerece dos perigos da corrupção. Mas quer, sobretudo, dar luta às suas causas profundas - e à estrutura em que o enriquecimento ilícito é irmão gêmeo de um aparelho de poder que tem os seus donos, seus favorecidos, moços de recados, relações públicas e propino-boys. O statu quo constrói, por aí mesmo, toda uma corte de favores esperados, em mais um caso público da liturgia do opróbrio que faz parte do continuísmo profundo do regime.
Sobre a boda única da posse do presidente continua, no país de fundo, esta festa no céu, dificilmente percebida pelos mandarins da opinião pública. O PT alcançou esse reconhecimento identitário - de que se sente cercado o chamado “Brasil bem” - seu silêncio, sua paciência, com o começo do novo Planalto. O dito povão não esgotou ainda o prazer da posse, do “ser governo”. Sua força está, inclusive, num capital inicial de figuração a que dá curso de maneira exemplar o presidente; de liame que não é de crédito ou dos cerimoniais de cobrança das elites, mas de confiança intransitiva. O dado histórico é o do roldão ganho pela vitória eleitoral inédita, e que não se desmonta pelos processos de destruição de imagens, clássicos do statu quo que se vinga, na sua diatribe, do que não logrou garantir com o voto.
Ninguém tem dúvida de como a consciência petista cobra e dá conta do que lhe infeste o status quo pela inércia herdada ao entrar em Palácio. O essencial hoje é que não pense o governo que, por aí, supre o verdadeiro clamor de base, que não se sacia pela exorcização do corrupto. É irrelevante que a fogueira moralista possa chamuscar o PT. O que o queimaria, sim, seria a perda, pelas incinerações a fogo lento do verdadeiro espaço e escala da agenda real de Lula e do responder à espera do Brasil de fundo. O último alento do passado é tentar ainda vender um futuro à sua miniatura, e ao seu desencanto.
O Brasil do Jequitinhonha, da Brasília Teimosa, dos Sem-Terra, de Acauã, ainda não acordou da vitória e da forra do nosso inconsciente coletivo. Mas ao fazê-lo passa pelo programa Fome-Zero para cobrar a expectativa inédita que se desata no programa da Bolsa Escola que mal começa. Desmesuradas, estas tarefas passam pela esperança selvagem e pelo imaginário do outro Brasil. No que se faça com Waldomiro, em nada se escapa dos novos olhos de ver, que despertam para uma agenda diferente e não cobraram, ainda, a sua pressa imemorial.
O Globo (RJ) 22/3/2004