O atentado da estação de Atocha trouxe à mídia mundial o semblante da Espanha toda; olhares certeiros, em excesso, semblante por semblante, desses oito milhões que foram às ruas, em nada massa nem sombra, perfis acutilados, na vigília que começava a mudar em horas a história de seu país. É quase inédito este lance de nossos dias, ajudado pelas vésperas do voto, numa alteração de cabeça do povo, assestada muito para além de uma mera reprimenda, ou de um desconforto passageiro do eleitorado. O governo Aznar precipitava-se num poço sem fundo, frente às certezas e tremeluzes da vitória certa, até a quinta-feira das explosões.
Diante do horror, o Executivo não hesitou em imputá-lo às razões erradas, e a expor como vilão o terrorismo basco, vergastado à exasperação, por todo o tempo de poder do Partido Popular. Aznar tremeu por demais a mão na manobra, acusando, sem pestanejar, não obstante se avolumasse a soma dos outros indícios, levando aos celulares detonadores, nas mãos do Al-Qaeda.
O pós 11 de março madrilenho mexe um oscilador de mudança profunda de um povo inteiro, num exercício de consciência que é também o de vergaste exemplar de um partido e de uma força política que se credenciasse a liderar um destino nacional. Aznar mentiu e, mais ainda, manipulou. Tinha diante dos olhos o começo de evidências de que a matança discrepava do talhe conhecido da ETA. Não obstante, saiu da dúvida prudente no convencer os condutores de opinião da autoria que multiplicava, em meio à catástrofe, ainda o seu sucesso eleitoral. Confiava na exasperação de um choque interno que entorpeceria o plebiscito contra a aliança com Bush na invasão do Iraque.
A vitória contundente do opositor, Zapatero devolve o país, na área internacional, àquela vocação específica do Continente, de fugir às cruzadas, e à escalada do terrorismo e contra-terrorismo, de que souberam tão admiravelmente apartar e, de saída, Paris e Berlim. Foram os comícios populares gigantes que, a 15 de fevereiro de 2003, nos dois milhões de Barcelona e no milhão de Madri, mostraram até que ponto a decisão política pró-Bush de Aznar seria frontalmente repudiada por uma consulta popular. Não fica a meio caminho a primeira fala de Zapatero que batiza o Partido Socialista ganhador pela declaração imediata de que retirará as tropas de Bagdá e repudia a guerra de Bush, e a desmoralização das Nações Unidas.
Foi em termos de pito histórico que se viu na mídia a imagem retesada do presidente americano, ao ver o desfazimento rapidíssimo da aliança para impor ao Iraque as modelizações do após Saddam ao preço da ''guerra eterna'' a que poderá levar, como repetiu em fevereiro. Suma injúria para Washington é a de Zapatero, que não deixou dúvidas sobre o que lhe competirá, à testa do governo em Madri.
Tersa, decidida, esta nova Espanha, que sabe de seus lutos, na dignidade do Quixote, como de rupturas e altanerias, tão distintas dos cálculos de oportunidade dos regimes de pechincha histórica e do barateiro da prosperidade. Começa também a rachar o álibi das alianças por sobre o engaste real de hegemonia com que os Estados Unidos se instalam no Oriente Médio e Bush-filho dá conta do recado e da forra de Bush-pai. A onda de Madri aprofundou uma semana após no avanço socialista nas eleições regionais francesas, num contexto em que, ao contrário dos Estados Unidos, a dimensão internacional pesa no cotidiano, e a nova voz eleitoral quer se ver como um plebiscito contra a Cruzada. E na enorme aceleração histórica da última quinzena, exasperou-se também o enlace terrorismo/antiterrorismo, no seu terreno patibular, na execução pelos dispositivos militares de Israel, do Xeique Yassin, o ícone paralítico, responsável pelo Grupo Hamas, à frente das mortandades assumidas. O confronto passa agora a uma execução sumária entre adversários, buscando com lentes eletrônicas o recorte precisíssimo do alvo, e o destruindo sem delongas. Nos macabros recados desta luta, a precisão tecnológica tem condições de trocar, a seu alvedrio, o horror da hecatombe das torres gêmeas, e o massacre difuso pelo abate de lideranças escolhidas e escrutinadas.
Qual o efeito exponencial destas mortes em ablação cirúrgica das estritas chefias dos movimentos islâmicos? Todo o mundo, e o papa à frente, reconheceram como a execução de Yassin rompia uma verdadeira ''barreira do som'', na escalada terrorista. Só os Estados Unidos justificaram ainda junto a Israel o apelo à legítima defesa.
Mas onde vai parar este curto-circuito entre o míssil da morte certa e os vagalhões imediatos da reação popular? Ou, sobretudo, diante da eliminação peremptória dos líderes a domicílio onde termina os jihads de cada um? O caos no terrorismo não elimina os meninos, bombas humanas, sem Yassins ou seus sucessores, para chegar à trégua, como já aconteceu com o próprio grupo Hamas. A rota dos helicópteros de execução é também a da retaliação cega, ou da perda do nível do mar da esperança de paz dos homens. Até do Mar Morto.
Jornal do Brasil (RJ) 5/4/2004