No momento em que o Congresso Nacional retoma os trabalhos legislativos, considero ser necessário estabelecer como prioridade o debate da questão institucional brasileira, que passa necessariamente por vertebrar uma autêntica federação. Malgrado o Estado brasileiro ser, como é notório, uma República Federativa, ainda sofre de grande centralismo em torno da União e elevado grau de competitividade entre estados, Distrito Federal e municípios.
Sem pretender ter a ousadia de apontar as causas de tais fenômenos, convém salientar o fato de que, diversamente do que ocorreu nos Estados Unidos da América do Norte, cuja Constituição inspirou, e muito, aos homens públicos brasileiros, a nossa federação não é filha de um genuíno “pacto federativo”, para usar expressão tão em voga.
Uma federação robusta geralmente nasce de vontades de estados ou províncias que se associam e definem a natureza, a extensão e os limites destes, e a competência do poder central - a União. A propósito, mencione-se Ronald Reagan, em discurso na Presidência dos Estados Unidos: “Todos nós devemos recordar que o governo federal não criou os estados; os estados criaram o governo federal.” É por essa razão que a federação norte-americana se define com a máxima latina “Et plurimus unum” . Não foi, entretanto, o que ocorreu no Brasil.
Convém não esquecer, talvez por constituirmos país de grande expressão territorial, que a descentralização, leia-se a organização do Brasil sob a forma federativa, foi aspiração que permeou muitos dos movimentos significativos de nossa História, da qual são exemplos a Inconfidência Mineira e os de 1817 e 1824 ocorridos em Pernambuco.
A vida republicana brasileira exibe, ao longo da História, instantes de descentralização e longos períodos de concentração de poderes na União. Todavia, a sociedade percebe agora a erupção de novo ciclo concentrador da União, aluindo as bases do Estado federal, apesar de a Constituição de 1988 haver buscado robustecer os estados e erigido os municípios à condição de entes federados - algo inédito em nosso constitucionalismo instituindo um “federalismo trino”, como batizou Miguel Reale.
Promover a reengenharia do Estado federal é contribuir para consolidar as práticas democráticas, uma vez que a descentralização é mecanismo essencial para assegurar a plena cidadania. Precisamos construir no Brasil um modelo federativo que seja compatível ao mesmo tempo com a igualdade jurídica dos estados, a superação das assimetrias econômicas e desigualdades sociais e a preservação da diversidade cultural.
Falta ao Estado brasileiro um embasamento político, uma doutrina estabilizadora dos interesses sobre a qual possa assentar-se o edifício de instituições que reflitam o equilíbrio federativo reclamado pelas exigências dos avanços já alcançados a partir da consolidação da democracia (Constituição de 1988) e da higidez da economia (Plano Real).
As modernas definições de democracia preocupam-se com os mecanismos decisórios da política. Daí se afirmar, em nossos dias, que a democracia é o regime político caracterizado pela contínua capacidade de resposta do governo às preferências dos cidadãos, considerados politicamente iguais. Enfim, o exercício da política não pode ser um instrumento de conservação, mas de transformação que a Nação reclama há séculos, em busca de uma sociedade mais solidária e justa.
Ao Senado, que, segundo Pimenta Bueno, no Império foi “conservador do princípio da nacionalidade”, cumpre na República - e esta agora talvez seja a sua mais importante tarefa - ser a “Casa da Federação”. A ele cabe a ingente tarefa de aprimorá-la e desenvolvê-la, em parceria com os demais poderes da República e entes federados.
As “reformas políticas”, que prefiro chamar de “reformas institucionais” e pelas quais luto há décadas, não se limitam ao importante território do sistema eleitoral e à estruturação de partidos sólidos. Elas pressupõem, de igual sorte, o aperfeiçoamento do sistema de governo, inclusive removendo áreas de atrito entre os três poderes, o revigoramento dos valores republicanos e, obviamente, o redesenho do modelo federativo. Este impõe, entre outras ações, reforçar a desconcentração e a descentralização, através do fortalecimento dos estados e municípios.
A política não é somente ciência e arte daquilo que é, mas igualmente práxis daquilo que deve ser. Reclama de todos nós, investidos do múnus da representação, tornar realidade, sem pressa, mas sem pausa, nosso denso e profundo sentimento federativo.
O Globo (Rio de Janeiro) 10/03/2005