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Direita e direitos humanos

 

Os meados do ano mostrariam paradoxos frente ao que deveria ser o recado de maio de 68: a consolidação de uma consciência universal pelos direitos humanos. Aí está a manifestação dos "gujeratis" na Índia, pedindo para serem rebaixados de casta, de modo a poderem fazer jus a melhor subsídio no sistema, que os aproxime dos párias. Ou seja, os intocáveis de há milênios, e cuja permanência é a maior bofetada à idéia de igualdade entre os homens, que pede o século XXI. Esquecemo-nos de como a segunda maior população do mundo deu as costas à modernidade, e que transforma o imperativo da justiça social num jogo quase cínico de indenização, por se submeter ao regime de castas, e se conformarem ad eternum com esta mecânica da abjeção social.


Por outro lado, Scott McClellan, ex-porta-voz de Bush, vem de denunciar, em livro de memórias, não só a mentira sistemática do Salão Oval, mas a convicção de que a sua versão sobre as armas nucleares de Saddam Hussein se tornava essencial para assegurar a guerra preventiva, e a garantia da paz hegemônica americana. Desnecessário salientar o impacto da denúncia sobre o governo de Washington, que, pela primeira vez, tem, da intimidade do seu gabinete, a confirmação de que a guerra do Iraque nasceu de uma realpolitik deliberada americana, à margem da verdade do perigo nuclear do governo de Bagdá. O drama só se reforça na veemência das palavras de McClellan, e do remorso que manifesta à opinião pública, de não tê-lo feito antes, no dilema entre sua consciência e a lealdade ao Presidente. As palavras contundentes do livro evidenciam a política pública da mentira, em bem do que, de maneira quase despótica, o governo considera o "bem comum" da coletividade.


IR e VIR. A inquirição nova desses dias, no nadir de 68, é a da violência da repressão aos movimentos migratórios, transformados em plataforma política vitoriosa pelo governo Berlusconi, que alardeou o seu propósito para chegar ao governo italiano. O que está em causa é se saber até onde o direito de emigrar se encontra na pauta das exigências de melhoria social de nosso tempo, e de que modo a circulação internacional de pessoas é componente do direito à liberdade, ou à integridade física. Só se repetem as declarações do Tribunal de Haia de que o direito à migração é extensão necessária do "ir e vir", que nada tem de comum com os direitos sociais e as políticas de indução à melhoria de emprego e de renda, por onde desponta uma verdadeira sociedade internacional. Nada mais contrário à expectativa do "mundo só" que virou o século, do que o direito cidadão, de definir, pela residência, o espaço jurídico a que quer pertencer.


Toda Europa de hoje, na subida inquietante das suas direitas, começa a estabelecer restrições amplas à imigração, a partir, sobretudo, da repetida crônica da violência dos ciganos e dos romenos na Europa Ocidental. O Velho Continente estaria repetindo uma mesma síndrome que, no governo Bush mais que a imigração em geral limita, hoje, o acesso dos mexicanos ao país. E ao ponto, inclusive, de presumir a sua criminalidade e levar à cadeia ou à deportação - tanto não apresentem contrato de trabalho, depois de cruzar a fronteira.


A nova direita européia concentra seu jogo, de modo geral, no mundo muçulmano, com as implicações inquietantes de uma nova detergência cultural, querendo fazer refluir dos seus espaços históricos uma cultura que exatamente na sua tradição enraizou-se na Europa com influência decisiva sobre o universo balcânico até o século passado. Toda entrada da Turquia hoje na Comunidade Européia balança diante desta nova barreira, e a direita holandesa quer ir, inclusive, à provocação expressa, para frear a vinda do Islão ao Continente, confrontando o peso tão importante de turcos na Alemanha ou, de modo geral, dos povos maghrebinos nos países mediterrâneos.


A mesma Europa que execra Guantánamo e as guerras no Oriente Médio depara com uma política de espaços vitais, no tom execrável de um neofascismo, e de defesa de um futuro de descontaminações históricas em que se somam aos grupos holandeses, a Polônia e, inquietantemente, o neo-americanismo da Europa Oriental. Mas uma vaga de mudança está se levantando nos Estados Unidos pela candidatura Obama, num impacto ainda incalculável sobre os fundamentalismos sociais. Ou, sobretudo, no entender que uma luta contra a hegemonia é inseparável da afirmação dos direitos humanos e, nestes, do direito da capacidade do cidadão do viver onde queira, para além dos riscos das guerras de religiões e das fronteiras fechadas inconcebíveis no século XXI.


Jornal do Commercio (RJ) 6/6/2008