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Diálogo e pluralismo islâmico

 

O presidente Lula tomou a iniciativa de reunir as nações árabes pela primeira vez na América Latina. É esforço de enorme impacto que evidencia como a nova política externa brasileira exorbita os laços do continente, e vai além da aliança de Brasília a Pretoria e a Nova Déli. O lance novo é, de fato, de buscar, através dos Estados, a conclamação mais larga deste alinhamento, em que as culturas se encontrem e se definam num marco de resistência a um mundo hegemônico. A visão brasileira foi alvo de larga abordagem, em reunião inédita em Paris, a 5 e 6 de abril, com os presidentes Khatami e Bouteflika. Avança este novo acordar diante de nações críticas, hoje, para superarmos as retóricas fáceis e buscarmos outras vozes mundiais diante da cruzada do Salão Oval.


Quase um milhar de convidados, em iniciativa oficial da Unesco, reuniu-se para analisar a prospectiva de um universo que, ao lado das nações, encontrasse as entidades não -governamentais e as universidades, para voltar às raízes de um pluralismo de perspectivas para o nosso tempo. Depois do horror do Al-Qaeda, mostraram os discursos dos presidentes do Irã e da Argélia, há que denunciar o rapto ideológico da verdadeira dimensão humanitária para um mundo que reencontre a paz, a partir da defesa do convívio das diferenças.


Permanecemos nessa "civilização do medo", que pode inclusive se utilizar do álibi do terrorismo para impor um mundo de controles, insuspeitado na sua envergadura pelo recurso às guerras de preempção. Tanto Khatami quanto Bouteflika, aliás, salientaram que esta busca de pólos distintos do encontro e do reconhecimento internacional começam, inclusive, pelo próprio Islão. Há que atentar à matriz iraniana, tal como à árabe - esta, a única convocada pelo Governo brasileiro - e, sobretudo, a turca, dotada de tanta importância para a estratégia da União Européia, no primeiro reequilíbrio dos atores que pede a alta escala internacional de após a queda das torres de Manhattan.


A Academia da Latinidade, aliás, começa no próximo dia 12 o encontro em Ancara e em Istambul, para se adentrar neste outro vis-à-vis, que pede um mundo das diferenças, enquanto ainda é tempo. O presidente Bouteflika foi incisivo, em mostrar de que maneira o Mediterrâneo é a plataforma essencial para o desarme da cruzada pelo diálogo. E a partir do anfiteatro geopolítico que deixou frente a frente há mais de milênio o mundo islâmico e o latino. É a tradição da romanidade que encontrou a expressão dos impérios islâmicos, rematados, sobretudo, no otomano. De lado a lado do mar, matriz da história, sempre encontramos expressões de poder cuja dominação jamais eliminou o multiculturalismo de base. Seja pela extensão por Caracalla da cidadania romana a todos os bárbaros, seja pelo respeito originário, com que os califas e sultões reconheceram sempre a autonomia judaica e cristã, como a dos "povos do livro", predecessores do Profeta.


O drama da hegemonia que ora começa é o de entrarmos num mundo mediático, onde a força de envolvimento dos padrões e valores do superpoder terminam numa captura da alma dos outros povos. Estamos diante desta virtualização da subjetividade em que é todo um inconsciente coletivo que se vê, subliminalmente, devorado por uma iconologia que arrasa as visões de mundo e os estilos de vida que ainda confrontam a civilização ocidental, como o defende a cruzada pós 11 de setembro. Não há como deixar que o progresso, no sentido acrítico e em avalanche termine por expropriar o sentido de identidade dos povos que tenham outra visão da convivência num mundo só.


Khatami insiste no principal perigo de uma civilização hegemônica, que é o de impor, à guisa dos valores universais, tão-só os seus simulacros. É o que inquieta na nova dimensão da cruzada bushineana quando, à viva força quer impor, a todo o mundo, e até na sinceridade das classes médias americanas, a sua crença na liberdade ou na democracia. Todo universo não tem que estar submetido à Declaração de Independência Americana, mas sim à maneira pela qual os valores, para se generalizarem, subordinam-se às peculiaridades que definem povos e não Estados prosélitos. Como reagirá o mundo ao passo seguinte ao Iraque? Mantendo as forças americanas perpetuamente embarcadas até quando entender o Salão Oval, e inteiramente à margem do que digam as Nações Unidas, quanto ao seu conceito de liberdade, garantia das minorias ou do confronto entre prescrições religiosas e direitos humanos? A questão permeava todo o mais amplo plenário da Unesco, já às vésperas desses novos impasses da consolidação do Estado iraquiano, como dos álibis do conflito nuclear diante das experiências com material físsil feitas governo iraniano.


Deixando o poder nos próximos meses, Khatami erigirá uma fundação para trabalhar toda essa gama de conceitos, de par com o combate universal contra o terrorismo. Instalada em Teerã, a nova organização que convocará estadistas e intelectuais de todo o mundo, não deixará também de ter um centro em Bruxelas. Não há mais representativo da busca da nova paz do mundo para além dos Estados nacionais. A União Européia quer mais do que vencer as fronteiras de um continente. Procura uma nova cidadania que entenda o quanto fazer frente ao mundo da cruzada é afirmar um estado ativo de consciência internacional. Este que sabe que a defesa da diferença a qualquer custo é a condição para que a liberdade não seja um slogan, mas o gesto de um pensar-se referido ao seu tempo e ao seu risco de todo instante.


 


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 15/04/2005

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 15/04/2005