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Depois da terceira via

 

Vivemos, nestes dias, essa desforra da cabeça na política brasileira, pedindo um anticlímax à fieira de sucessos do primeiro semestre presidencial. Mais do que crise, o que se vê é a superestimação de frustrações, aqui e ali, mais pelo clima de expectativas desatendidas do que por tensões concretas, a deixar cicatriz para um futuro imediato. É todo um quadro de retaliações antecipadas que voltam atrás.


O presidente do Supremo, após assustar as relações entre os poderes, procurando pôr fim à greve decretada dos magistrados. Ou as declarações de Stédile e das lideranças dos sem-terra, bem ou mal- interpretadas, causando bulha para além do quadro real das invasões.


O general Félix, responsável final pelo clima de segurança do País junto à Presidência, marca bem este descompasso entre os desgastos efetivos no terreno da política e o que inflama corações e mentes neste instante. Não é estrago de causar mossa ao essencial, ou seja, o contingente de votos que tangem à mudança da previdência, ainda que novas conversações com os governadores atrasem o relógio da reforma tributária.


O lufa-lufa destes dias, entretanto, não impede que se possa apreciar toda profundidade do impacto, lá fora, da ida de Lula a Londres, reforçando a possível alternativa às sortes hoje lançadas à globalização.


Nosso Governo sofreu a apreciação minuciosa do dr. Giddens, na London School of Economics, templo da expectativa de um outro caminho que o da vala das sociais democracias diante dos receituários em mão única de uma sobrevivência internacional. O cientista político inglês, pai da Terceira Via, ora, ao se aposentar, quer definir as heranças do que ainda, há duas décadas, pensava-se como um seguro descarte do capitalismo triunfante.


Anthony Giddens que saudou, afinal, Lula com lágrimas nos olhos, viu o inédito de uma esperança nova, para além, entretanto, dos vaticínios de sua teoria, ou do que uma Europa, mergulhada na maré de direita, possa replicar ao mundo dos mercados, soltos sob a égide da hegemonia americana.


Esta liderança nova e quase que solitária do Brasil traduz, por paradoxo, também,uma busca para além dos vaticínios do guru de Blair, marcado pelos impasses da fidelidade a Bush e a perspectiva do Salão Oval.


É ledo engano, ou sonho, a esta altura imaginar-se que a União Européia possa representar um contrabalanço no ninho da riqueza mundial, ao jogo desta lógica global que hoje retoma, inclusive, o superavanço das fusões compulsórias das supermultinacionais. Era da mesma hora da recepção de Lula a notícia do enlace final entre a Alcan e a Pechiney, no comando mundial do alumínio, subtraindo-se a toda veleidade final de que as autoridades de Bruxelas pudessem intervir, ou regular o remate superanunciado.


É cada vez mais modesta a idéia da alternativa, a partir do realismo inclusive do primeiro mundo que exprime Anthony Giddens. E soluções, como eventualmente a brasileira, ainda apoiada na recuperação do Estado e na reorientação das forças econômicas para a relativa autonomia do nosso mercado interno cravam um vaticínio de que fica aquém a esperança do sábio londrino.


O professor, na verdade, não admite mais a intervenção do estado em serviços públicos, e joga toda esperança de um contraponto ao neoliberalismo, no papel direto da cidadania e deste fator novo na possível decisão internacional que representou o acordar das multidões, o protesto nas praças, dos milhões de participantes, no clímax do último 15 de fevereiro contra a invasão do Iraque.


O futuro diferente estaria apoiado no avanço de um espaço público e não estatal, e na ação direta dos consumidores para se contrapor às racionalidades dos mercados globais, e sua hegemonia a princípio irresistível. Confia, sobretudo, em que a interferência cidadã se possa dar nas fronteiras novas da vida social, expressas pelo avanço da ciência e tecnologia, de par com a nova consciência ambiental da virada do milênio.


Nesses domínios, acredita que é hora do desempenho inovador, com toda a força do protesto iniciado em Seattle - de modo a buscar-se soluções na economia do conhecimento e na gestão ecológica, onde uma consciência de interesse público imediato possa se contrapor aos jogos feitos das multinacionais, seus tempos de maturação de investimento, sua oportunidade de lançar inovações no mercado.


De toda forma, a Terceira Via parece se ater, no seu quase réquiem, a um reformismo diluído que espera, passivo, a ação direta da sociedade civil, a rimar com o controle de bens, interesses e espaços confrontáveis ao privado e confiando sobretudo nas tensões acrescidas da globalização que está aí.


É o que suscita o novo conceito da guerra preemptiva e permanente, em que a luta contra o terrorismo profissionalizou a star war, e a sua suntuária indústria armamentista. No suprimento dos engenhos de destruição como e, sobretudo, o suporte pelas mesmas verbas do gigantesco programa de reconstrução imediata do bombardeado na véspera. É a verdadeira economia virtual em que se corre e se licita o plano de reconstrução do Iraque, tal como antes votou-se o orçamento de seu abate maciço.


Quantas vezes na história imediata da globalização se registrará este duplo movimento, quase já reflexo, chegue antecipado, que detalha todos os seus gastos e marca os seus alvos para destruir e refazer? Como fica a interferência na paz global desses mercados, surgidos da síndrome do 11 de setembro?


Pergunta-se, face a estas novas e gigantescas ondas de capital, se permanece a velha geografia da primeira globalização; do jogo ainda de centros e periferias, na acumulação excessiva, e na expulsão do mercado das populações inteiras do planeta. É para além da Terceira Via que começam hoje estas cogitações, escapadas aos cálculos da tranqüila afluência européia.


Neles os papéis excrescentes hoje do velho terceiro mundo como o Brasil, ganham cada vez mais, no que já sinaliza Lula, uma outra voz internacional. E até onde o seu acelerar muda o que ainda agora se vê como a ruína prevista do Mercosul, e a fatalidade da Alca? Quiçá, solitário, este Brasil de agora, em tempos de absoluto insucesso da esquerda européia avulte até muito mais do que como símbolo.


Afinal, Lula já saiu de Washington com a promessa de uma "Alca light" e de uma presença maior nessas tratativas da Organização Mundial do Comércio. No mundo hegemônico só sobraria para as periferias o proclamado "conservadorismo compassivo" de Bush, ora repelido frente à devastação africana. O que conquistamos nesses seis meses de alerta para o diferente lá fora, nos permite ir além de uma vaga, na imensa fila indiana da caridade, nos armazéns da dádiva imperial.




Jornal do Commercio (RJ) 1/8/2003