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Depois, afinal, do Mercosul

 

Desponta no começo de ano, a notícia de que o Uruguai de Tabaré Vásquez, o socialista do Prata, negocia com os Estados Unidos uma abertura de mercado fora dos protecionismos do Mercosul. O formato aponta à Alca, e se soma ao horizonte do Chile ou do México.


Sobretudo, estende a mão ao Paraguai em levante dos reconhecidos e proclamados sócios menores, da aliança com o eixo Brasília-Buenos Aires no Continente. E Assunção traz, ainda, de banda, o vasto e nebuloso acordo com Washington, de bases militares, para eventual controle do narcotráfico e da subversão abaixo dos tristes ou meigos trópicos.


Vão afluir os desmentidos e os "por supuestos" das embaixadas atingidas. Mas no que haja, já, de assinado ou de impostura nas tratativas, só se torna mais nítida a verdade de que o mundo das hegemonias já deixou de lado as estratégias da globalização de antes do 11 de setembro. Uma síndrome internacional de segurança, por outro lado, começa a vulnerar as exportações mais ambiciosas da tecnologia brasileira, no embargo pelos Estados Unidos às vendas da Embraer para a Venezuela de Chávez, de todos os perigos. E foi no Governo Lula que a visão continental se abriu a uma nova e vastíssima estratégia geopolítica, que derruba os velhos alinhamentos sub-regionais na América Latina.


Perdeu-se o intento regional andino, tal como o Governo brasileiro busca uma nova unidade continental, à margem das velhas trincheiras e conflitos de interesses, localizados na Cordilheira, ou no estuário do Prata para mais de meio século. Se nos largam os parceiros chicos, já está aí o governo de Caracas, na aliança com a Argentina e o Brasil, não se sabe ainda se para o desempeno final do desenvolvimento, ou para estabilização da escalada de Chávez. Só cresce a importância do petróleo que é seu, na nova condição de carência mundial do produto rei, ou de um efetivo desequilíbrio do Oriente Médio. É no foco de toda esta nova América Latina que irrompe a opção política da Bolívia de Evo Morales, como exasperação do impasse dos Estados nacionais, prometidos pelo desenvolvimento e da fragilidade institucional que ronda o Planalto Andino, ameaçando até a sua consciência identitária.


A Bolívia dividiu com o Equador nos últimos cinco anos a condição de grande inválido da democracia, nas quebras sucessivas de governos eleitos, de exílios de presidentes, e nas voltas às urnas para o rito sem esperança. Morales é muito mais do que a forra política do país de marginalidade estrutural, a expressão de um novo sentimento coletivo, de que os sociólogos hoje chamam de "culturas subalternas" na América Latina. Na verdade, com a ruína do desenvolvimento e o avanço do neoliberalismo, foi o próprio Estado, como pensou a modernidade que entrou em colapso, a partir do miolo do continente. Até onde leva de roldão a nação mesma, como a viu o último século, na falsa promessa da modernização e do progresso? Morales reintrincheirou-se na realidade índia de seu país, reuniu a força de quetchuas e aimaras, e clama em função de um passado mais fundo, traído pela incontável chegada e refluxo da Bolívia às bem-aventuranças da prosperidade.


Não estamos diante de mais um governo com prazo de promissória, mas de um surto profundo de força política, que faz da sua fraqueza força, e não deixa dúvidas sobre o inconvencional dos seus procederes. País paupérrimo num solo petrolífero riquíssimo, não faz mais praça da mendicância internacional, ou da assistência das Nações Unidas. E vai terçar armas justamente da nova independência com o Brasil, que, nas suas fronteiras, reproduz o porte de nosso enfrentamento com Washington.


A Petrobras responde já por 20% do produto boliviano, e pelo dobro desse percentual na sua fiscalidade. Morales respaldou-se na sensibilidade de estadista de Lula para dar o salto qualitativo, nessas relações de congênita dependência entre La Paz e Brasília. Não quer renovar quotas, nem percentuais de renda deixada pela superempresa brasileira no país. Quer, sim, legítima parceria com a nossa estatal. No lance de Lula, há dias, em Brasília reside, talvez, a abertura mais criadora em que uma sociedade de riscos no rateio de prosperidade efetiva entre as periferias se substitui a percentuais de aproveitamento e exploração intestina, no que possam, ou não logrem, estas economias nacionais em confronto. Sergio Gabrielli pode dizer, talvez para grande choque da racionalidade neoliberal, que a Petrobras vai, de fato, "ganhar menos" dos campos petrolíferos de Santa Cruz. Mas para definir um novo trunfo político, onde o sustento de legítimos governos nacionais, fora da pauta neoliberal ganhe alento para a confrontação hegemônica, a médio e largo prazo.


Saímos do arrufo lírico do velho Mercosul, para ver que uma estratégia de poder realmente continental passa por acordos bilaterais. De economia, como de defesa e segurança. O que hoje formule o Paraguai tem, como contrapartida, um novo cuidado de Lula ou Kirchner com o amparo a Chávez.


Nem haverá como, para os anos que ora se abrem, na política externa brasileira - que é trunfo nítido para a reeleição - subestimar o precedente aberto de entendimento e concessão a Evo Morales. Ainda há uma trintena, no começo da atividade da Petrobrás na Bolívia, os muros da capital pintavam-se do grito "abajo los buitres brasileños". Não é mais o Brasil dos abutres - desaforo que absorveríamos com a bonomia de um superpoder - o que hoje se repetirá em La Paz, no inédito de uma cooperação internacional, para além do ganho e da bolsa da hora dos mais fortes.


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 20/1/2006