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Democracias e eixos do mal

 

O meio do ano desarma as perspectivas críticas da estabilidade mundial, avivadas desde o começo do ano pela vitória do Hamas na Palestina, às primeiras declarações de Ahmadinejad de ameaça de confronto nuclear com os Estados Unidos. Mas venham-nos as boas novas inesperadas pela aposta direta no próprio jogo da persuasão e da democracia quanto aos jogos feitos da hegemonia e a fatalidade dos proclamados abates dos "eixos do mal". De saída, pelo tino de estadista do Presidente Abbas, no veio de Arafat, entendendo o quanto à força das eleições só se sobrepõe a da consulta plebiscitária à população. A vitória do Hamas em eleições indiscutíveis e fiscalizadas pelas Nações Unidas trazia ao poder a facção sofrida pela luta anti-Israel e a ganhar votos após o desgaste do partido de El Fatah, mantendo-se no embate crônico com o governo de Jerusalém.



À força da mudança seguiu-se o da consolidação, pelas próprias regras do jogo, destas maiorias inesperadas vindas ao poder, e mantendo de saída a nova radicalidade do confronto com Israel. Venceram-se as pressões externas contra o governo, a eliminação dos subsídios a partir dos Estados Unidos,ao risco até da queda da máquina burocrática da Palestina e seus 165 mil funcionários. Demorou, por outro lado, o atendimento da promessa dos países árabes,em pagar a conta deixada em aberto pelo Ocidente. Mas a pertinácia do respeito às instituições sob a inaudita pressão da hegemonia do Salão Oval vem agora, pertinaz, de pagar os seus frutos. À democracia, mais democracia. E dentro de semanas o povo da Faixa de Gaza vai responder ao plebiscito para confirmar, ou não, o propósito radical do governo eleito há um semestre.



É embalde, aliás, que, revelando a sua afoiteza de chegada ao poder, o Hamas considere que o seu eleitorado já resolveu a questão, não adianta voltar às urnas. Ao contrário, as primeiras sondagens de opinião mostram que 77% deste mesmo eleitorado vão ao plebiscito com a gana da paz e com a dissuasão de soluções violentas para a desocupação do colonato de Israel ou do reacerto das fronteiras com o vizinho.



A democracia mostra o quanto é o único caminho para responder ao nervo de uma tensão social e que esta de fato é vista com senso comum pelo povo muito mais do que com as elites comprometidas com o jogo paroquial de poder. Com o apoio já pressentido Abbas deverá conduzir o seu tino político à conciliação da convivência, de vez, com Israel e adaptação do Hamas à realpolitik e à possível virada de página do mais pertinaz e contundente dos conflitos internacionais de nossos tempos.


 


Negociação do Irã com o Ocidente


 


É desses dias também a primeira abertura do Irã a uma negociação com o Ocidente, saindo do impasse da ameaça da bomba nuclear contra a iminência de destruição do segundo "eixo do mal" deixada sempre nas entrelinhas do Pentágono e do grand finale do governo Bush. Até onde a bravata e a dita irracionalidade de Ahmadinejad tinham o caráter de provocação tática, para chamar a atenção universal sobre a progressão da guerra preemptiva e a erradicação final do alegado ninho de terrorismo abrigado pelo governo dos aiatolás?



De toda forma o avanço da paz neste meado de junho veio da capacidade do Velho Continente de destacar-se do Salão Oval, e manter, contra toda expectativa, um clima de negociação contra os fatos consumados e as soluções, todos os azimutes a que não se esquivaram as declarações de Rumsfeld frente ao extremismo anunciado pelo sucessor de Khatami em Teerã. Lance a lance, redobrou a Comunidade Européia a oferta da tratativa ao Irã, escandindo o tudo ou nada, oferecendo recursos ao desenvolvimento do país e, sobretudo, alternativas e tecnologia nuclear que afastassem a via única do enriquecimento do urânio para ambíguas finalidades de paz, que não disfarçariam o intuito da bomba.



Redobrou, ao mesmo tempo, o tento inédito de Ahmadinejad de dirigir-se ao Salão Oval e cobrar de Bush o rationale de sua visão de mundo e de uma possível coexistência na diferença com os muitos mundos islâmicos em que o Irã detém a linha de frente da ortodoxia.



Se Bush teria motivos para fugir ao enlace pela iniciativa de Ahmadinejad não deixou de acenar à viabilidade da negociação européia. E no inédito da acolhida da proposta de Xavier Solanas, talvez hoje o maior negociador do Ocidente, já se acena pelo menos a trégua frente ao clima de jogos feitos de há um trimestre passado.



De toda forma, parece repercutir uma nova moderação americana a redução da escalada em que Bush acusa a queda inédita da sua popularidade destas últimas semanas. Nada tem tal a ver, entretanto, com o imperativo básico da segurança nacional dos Estados Unidos apoiados por Republicanos e Democratas e o suporte à permanência indefinida das tropas americanas no Oriente Médio. O apoio do "Patriot Act", por mais um semestre, mostra o monólito de vontade americana no responder ao inominável do trauma da queda das torres em Manhattam. Mas a nova energia européia abre o caminho para uma flexibilidade do Ocidente. O freio à hegemonia é, de saída, a da convivência com os pretendidos "eixos do mal" que a missão Solana parece ter definitivamente acertado.


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 23/06/2006