Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Democracia e civilização do medo

Democracia e civilização do medo

 

Frente a Angela Merkel, Primeira Chanceler da Alemanha, Bush perguntado, sem rebuços, sobre o escândalo de Guantanamo, também sem papas na língua tornou muito claro que o assunto não é da humanidade, mas, sim, e acima de tudo, da segurança do povo americano. Será indefinida como nos prazos de Kafka, a espera por esse processo, nem há a cogitar-se de que uma Comissão Política Internacional possa visitar o presídio da península cubana. E, significativamente, no enorme alarido que cresce no Congresso contra o Presidente, a denúncia das torturas em Abu Ghraib ou dos vôos secretos da CIA na Europa, ou da escuta sem permissão judicial de todo telefone suspeito não chega ainda à detenção indeterminada dos prisioneiros vindos da primeira onda da guerra do Afeganistão, culminada no abate das torres e na invasão do Iraque.


Reconhecem os democratas no Congresso que o número dos encarcerados em Guantanamo não cresceu. Mas argúem da invocação, pelo governo Bush, de um direito prioritário de defesa da população, para além das regras normais no chamado Rule of Law ou do nosso Estado de Direito. Tem se repetido as manifestações no Parlamento europeu e inclusive os pedidos de sindicância de todas as legendas, a perguntar sobre a mantença do princípio básico da presunção da inocência até, de fato, a manifestação de provas e da convicção do crime.


Não se trata mais, apenas, de atentar-se às dificuldades, também, da interlocução dos acusados na cadeia e seu direito de escolha de advogados com o necessário acompanhamento. Na demonstração talvez mais contundente da crença da cultura americana nestes princípios básicos, um antigo Secretário de Justiça americana ofereceu-se hoje para acompanhar, em contrapartida, o julgamento de Saddam e defendê-lo. O exemplo é dos mais dramáticos em termos do compromisso americano com a sua Carta básica e com a modernidade nascida do respeito aos direitos e à liberdade com os founding fathers. O que está em causa, sim, é toda uma nova consciência internacional quanto à compatibilização entre terrorismo e respeitos básicos aos direitos no mundo civilizado. Na defesa da democracia hoje, a partir do Salão Oval, a garantia dos ritos eleitorais deve envolver, a fortiori, esta Rule of Law, paralisada hoje pelo impasse indefinido de Guantanamo.


No aprofundamento das questões, e no interrogatório infinito, avança a justificação do governo da possível amplitude das redes de terrorismo e o infindável da teia de agressão que pode ter detonado a derrubada do World Trade Center. Mas, ao mesmo tempo, é a própria opinião pública americana hoje que se dá conta da prática do conciliábulo de tais segredos de como lhes podem levar a um quadro conspiratório, senão mentiroso, na deflagração da guerra preventiva que derrubou Saddam. Como pode a mentira germinar nesses quadros de necessidade de salvação pública em que um governo veja envolvido o seu Estado e assuma o risco da guerra do Iraque. E como, principalmente, as novas eleições exprimirão o limite em que o terrorismo criou um racha entre os Estados Unidos da grande liberdade e do respeito de primeira democracia mundial, e do fundamentalismo evangelista mantido inarredável no segundo tempo de Bush na Casa Branca?


Só há a verificar-se, com a queda nova e contundente dos republicanos nas previsões eleitorais, não se dissociará da volta por Washington à defesa do Estado de Direito, nascido do clamor de sua cultura. Nesta rota se impõe o acatamento do Tribunal de Haia, para os crimes contra a humanidade, que envolvem, hoje, ao lado do genocídio ou do etnocídio, a tortura. Não há como admiti-la, mesmo a título de segurança do mundo, ou "suportável por métodos inovadores", como sustentou a Direção da CIA.


Esperando pelo desenlace de Guantanamo, a opinião pública internacional, através de tantos países que começam a interpelar Bush como até o novo conservadorismo alemão, até, querem ir a outra preliminar: como o Congresso americano, após declarações como a do senador McCain, irá à interpelação do governo sobre a chegada da preservação da segurança americana à justificação pela mentira da invasão do Iraque?


O discurso sobre o estado da União diante do Congresso, a 31 de janeiro último, não deixou dúvidas do quanto o Presidente se manterá inarredável no assumir o risco da violação constante do Estado de Direito, frente à ameaça terrorista, ainda redobrada pelas últimas declarações de Bin Laden. E, ao mesmo tempo, de não deixar dúvidas de que negar-se-á a convivência com a Autoridade Palestina, se o governo ora legitissimamente eleito com a vasta maioria do Hamas, persistir no intento de destruir Israel. O Salão Oval depara aí o último paradoxo. Impõe ao mundo a democracia e esta lhe força agora a uma convivência com as matrizes terroristas, na instabilidade política do Oriente Médio. O que será, nesse caso, o respeito ao regime político ideal, frente à rendição à sua estrita retórica, como realpolitik do mundo hegemônico?


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 3/2/2006