O mundo islâmico acaba de realizar em Tunis uma conferência inédita pelo seu vulto e suas interrogações quanto ao terrorismo contemporâneo, na ameaça ainda mal pressentida que impõe as noções convencionais de paz, ordem internacional ou vigência das instituições. De logo se definiu a visão de que os homens-bomba de agora ou os massacres repentinos, ou a selvageria da destruição sem volta, exorbitam da ação de grupos e vão hoje muito para além da Al-Qaeda. O horror é que não há um terrorismo oficial com que se poderiam negociar tréguas ou formas de detecção, na esteira das guerras frias, ou do jogo respectivo, dos preços a pagar pelo seu desarme.
A Conferência também se deu conta do anonimato crescente desta agressão, bem como das vítimas que produzam e, sobretudo, do projeto de desestabilização, sem volta que puxa o gatilho destas devastações. A queda das torres gêmeas não deixou dúvida sobre o quanto este novo terrorismo generalizado e anônimo, discrepa da violência na Irlanda do Norte, da explosão basca do ETA ou mesmo do Sendero Luminoso, ligados à conquista de soberanias ou autonomias culturais, sufocadas pelo Estado que as envolvia.
O que está em causa é a passagem do extremismo à ruptura sem volta da convivência com o outro, na busca radical da afirmação de uma identidade coletiva que se daria conta patologicamente do seu confisco ou segmento na sociedade universal de hoje. Seria, para alguns, como se viu em Tunis, o resultado protraído da “colonização da alma”, em que o Islão viveu o Ocidente, da dominação tecnológica, à conquista dos mercados e à subtração do seu imaginário. O processo larvar de vitimização dormitava nesse inconsciente coletivo, de súbito alertado pela revolução de Khomeyni e chegado à proeza do horror da derrubada das torres.
Todos os Estados islâmicos, presentes em Tunis, insistiram na mensagem intrínseca de tolerância do Corão, e no repúdio categórico da violência e, sobretudo como ação de Estado frente ao mundo da convivência em que o novo século deve voltar à dificílima cultura da paz. Mas o mundo do Profeta também não se engana quanto ao impacto, dentro desse inconsciente, de um sentido de forra à sujeição vivida ao longo das últimas décadas e que, subitamente, teria encontrado a sua contradita espetacular. Fenômenos como o da sideração, pelo feito de Mohamed Ata e seus companheiros, na catástrofe de Manhattam, põe em causa a importância de uma enorme pedagogia simbólica para se compensar a vindita daquele irracional de dominação, e à busca de um novo e efetivo diálogo contemporâneo. Mas, ao mesmo tempo, este não pode se louvar nos facilitários da boa vontade, e nos idealismos ingênuos das prédicas de conciliação, hoje a anos luz do discurso no fim do século passado.
A “guerra das religiões” pode ser a herança para ficar dessa “civilização do medo”, em que a subjetividade coletiva de nosso tempo corre o risco de ser expropriada por uma visão dominadora das tecnologias dos mercados, e dos imaginários “economicamente corretos”. O enorme programa à frente da Aliança não atentará, apenas, ao lugar comum dos desarmes dos antigos conflitos ou das guerras frias. Sabe do quanto uma pedagogia de resgate da confiança precede a toda retórica da racionalidade e das boas intenções. E, sobretudo, há que se atentar ao quanto não é pela sofisticação das técnicas repressivas que se suprirá o essencial da convivência de nosso tempo: o de fazê-la ao nível do mar da coexistência das diferenças e do direito, no seu seio, ao protesto e ao dissenso continuado, que são os verdadeiros antídotos ao extremismo e ao terrorismo sem volta. E vã será o apelo ao diálogo e sua melopéia se o jogo da confiança não começar pela assunção do risco da democracia sem volta para que não se atinja o terrorismo sem retorno.
Jornal do Commercio (RJ) 23/11/2007