Os comentaristas do pleito americano têm se desdobrado na busca da palavra-chave que tem levado à mobilização madrugadora e maciça do desejo de votar neste marco crítico de 2008. A mudança soma todos esses chamados, mas sem esquivar-se ao paradoxo desse apelo. É como se uma onda de inconformismo no imenso inconsciente social dos Estados Unidos se desse conta da inércia de sua prosperidade, presa cada vez mais à convenção do seu futuro.
Até onde permanece a sua raiz de povo de imigrantes, da grande travessia atlântica, da abertura da fronteira interna e da construção do tecido de megalópoles, em que se desdobra, de oceano em oceano? Ao mesmo tempo, vivem os Estados Unidos o choque de ser a nação incomparavelmente mais poderosa do mundo e sofrer, sem escape, a "civilização do medo" e o risco permanente dos terrorismos anônimos.
Não sabemos de Império que se cantone na defensiva, após o terrível portento do abate das torres gêmeas. Nem da dominação preventiva, que levou à invasão do Oriente Médio e hoje ao possível prolongamento indefinido dessa ocupação. A palavra "mudança" já está se transformando no conforto nostálgico de um álibi, para não sair o país de onde está.
Distanciamo-nos, a anos-luz, do rooseveltismo ou do kennedismo, quando afinal optava o país, ainda, entre a ação do Estado, para o seu bem-estar, e a entrega da melhoria a todas as virtudes do divino mercado. O republicanismo de Reagan e Bush chegou ao limite na assunção dos riscos extremos da desigualdade dentro da prosperidade. Hillary sofre agora de um démodé prematuro, por ter sido a responsável, no governo do marido, pelo último grande programa de assistência social no país. Seu fracasso à época foi o da democracia social, ao lado da exacerbação do individualismo e da competição implacável pelo sucesso de cada um.
A inércia do progresso tornou-a prisioneira dos simulacros sem fim do seu imaginário, comandado na sociedade mediática pela mais implacável tirania do consumo. Não há change nessa situação, levada a esse delta viscoso do universo aquisitivo. E toda visão crítica se engessa diante do pavor da repetição do abate do World Trade Center, como uma ferida narcísica. Os contrários se amortecem nessa busca do nome, sem surpresa, na fantasia assumida da mudança. Nela o candidato negro seduz mais pelo exotismo do que pelo aprofundamento de toda maratona dos direitos humanos no meio século, atrás de Martin Luther King. E Hillary não traz mais a novidade da mulher no poder. O gênero já se esbateu como reivindicação política, e a candidata é avaliada mais pelas suas propostas intrínsecas do que pela forra simbólica da chegada ao topo.
O Império perdeu a sua dialética e auto-anulou as suas molas, nesse pret-à-porter de um mundo de todas as serventias e desejos domesticados. O pavor com o terrorismo mergulha-o num mundo onde o outro é cada vez mais o inimigo, no paroxismo defensivo de uma coletividade trazida ao seu último patamar religioso.
O evangelismo mais rigoroso vem de par com a islamofobia, e a política externa é a da garantia da muralha impenetrável. Nessa perspectiva, a dimensão interna se agiganta, com o receituário e as canceleiras do conservadorismo. O evangelismo se pode comprazer nas suas distinções de fé, e os próprios mórmons vão à linha de frente de candidaturas, na tensão-limite entre a família e a poligamia. Não mais percute nessa equalização inercial da diferença e perdeu-se a mola da mudança, na definição de seus contrastes.
Difícil encontrar-se ponto de ruptura mais inquietante e o da distinção entre a prática retumbante da democracia e as limitações crescentes do exercício humanista da liberdade e do descortino, como pensou o Iluminismo dos pais fundadores da primeira nação moderna. Os sobreviventes vão todos ao troca-troca do seu papel-moeda da mudança. Mas votar em Obama, Clinton ou Huckabee ou Giuliani nada tem de comum com a opção por Roosevelt ou Kennedy, numa real opção de cenários de prometida à entrada da cabine eleitoral.
Jornal do Brasil (RJ) 23/1/2008