As comemorações de cinco anos do falecimento de D. Hélder Câmara, em Recife, dão-nos a envergadura desta presença na mais rica prospectiva para a Igreja brasileira. De saída, pela própria força do grupo reunido em torno do Centro Dom Hélder recém criado, do Centro de Estudos da Igreja da América Latina, no âmbito da Universidade Federal de Pernambuco.
Quase uma cinqüentena de estrangeiros no grosso dessa peregrinação dos franceses, a ecoar a irradiação externa do bispo, da mensagem do pós-Concílio Vaticano: da Igreja pobre como ligada aos sinais dos tempos, e aberta ao futuro, muito mais do que às restaurações nostálgicas do triunfalismo da Idade Média, voz das injustiças sem voz.
No centro da semana evocativa estava a ''família do São Joaquim'', o grupo, todo, dos cariocas que protagonizaram, ao lado do Dom, esta primeira experiência de um laicato participante, do Palácio da Glória, e dentro do empenho que crescia, ao lado da rede da CNBB e do Banco da Providência, no preparo do Vaticano II. Era o recado dessa experiência católica renovada no seio das tensões de agora, em meio às dominações, ao rapto mediático, aos pecados da boa consciência, à luta contra as Cruzadas e à busca do diálogo ecumênico por sobre, até, o das divisões das Igrejas cristãs. A esse D. Hélder e a sua mensagem de construção da paz voltou-se a consciência internacional para outorgar-lhe o Prêmio Nobel em 76, atropelado por circunstância nesta história venerável, quando o governo brasileiro impediu a outorga. Fora vista como injuriosa, às autoridades militares, objeto da denúncia das torturas, pela palavra incessante do padresinho, calado aqui, e encontrando os auditórios abarrotados da Europa.
A marca profética é a que cresce neste primeiro qüinqüênio de sua morte, pelo despojamento radical do anúncio, em que, à Igreja pobre se soma a comunhão com o destituído pelo espetáculo; reclamo do povo de Deus, que jamais se pode condenar ao ultimo exílio do imaginário. É este o recado de D. Hélder do preparo do monumental Congresso Eucarístico do Rio, da Cruzada São Sebastião, que garantiu o condomínio visual do favelado, com os ricos nos edifícios da Lagoa, erguidos na lama da antiga Praia do Pinto. Esta preocupação simbólica se rematava na apoteose apostólico-cenáristica que imaginara para o fim do Concílio.
Começa agora a tarefa da publicação das obras completas do Dom, a iniciar-se pelas circulares à família do São Joaquim, nos permitindo, em verdadeiro panótpico, a história das duas primeiras sessões do Vaticano II. Vê-se o que foi a capacidade de organização do então Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro, frente à inevitável tensão entre a Cúria e a nova voz buscada diretamente no episcopado de todo o mundo, pela intuição profética de João XXIII. Falta-nos o relato da revolução interna da Igreja, propiciada por esta mirada versus populo. Não é apenas uma memória, ou um estudo crítico teológico, como o de Congar ou de Haring.
É o raconto da articulação de toda hora, combinada com o quase confessionário da multidão de protagonistas, que trocam impressão com o bispo brasileiro. Tudo é passado à sua base no Brasil, na caligrafia minudente da carta diária, em que o escritor se ressente inclusive do desgaste físico da pena, na usura da vigília da madrugada entre o redigir e o meditar, onde o ''Padre José'' assumia o bispo combatente, e se preparava para a surpresa dos encontros do dia seguinte, ou dos bloqueios sistemáticos, em que uma velha diplomacia vaticana perderia o profeta incômodo nos magníficos corredores da espera infinita. A instauração da força de uma colegialidade episcopal surge como o primeiro ganho do concílio, na mesma forja em que D. Hélder já organizara a CNBB no papel dos seus regionais, da sua toma de palavra frente aos governantes, e na efetiva animação dos movimentos sociais.
O padresinho não logrou, e próprio de todo profeta maior - que sempre fica, como Moisés, aquém da última visão da cidade prometida - acelerar a definitiva superação de uma Igreja Contantiniana, ligada ao poder e, a seguir, à opulência renascentista e ao exercício das soberanias temporais dos Estados pontifícios. O concílio não aceitou a proposta da Igreja pobre, da destituição das recompensas do mundo, de retorno à primeira comunidade em que começou o anúncio dos apóstolos. Mas essa Igreja que não completa ainda o despojamento, mas se encarna, já, no serviço do povo, é a que D. Hélder pôde protagonizar.
A Igreja das Fronteiras, com o seu espaço fundado e refeito na capital pernambucana, não traz apenas na pedra viva e nas colunas deixadas à cicatriz do tempo, o recado de uma perenidade como singeleza. Aí está a alegoria popular crescente, de um D. Hélder de feira e do lore, na mitologia que supera a de Padre Cícero, no melhor do inconsciente coletivo desse Brasil de Deus e dos moleques de Olinda, falando do Bispo que descia do ônibus e pegava-lhes a mão para subir as ladeiras para a Catedral Primaz. É esse D. Hélder que nos deu as deixas para continuar a caminhada, no saber-se como passar, da promoção à verdadeira liberação; da mobilização à efetiva transformação social. São rotas específicas desta Igreja da América Latina. A da tarefa da persistência de uma teologia para a radicalidade de mudança, como responder ao sacrifício da espera, para o novo que se exige do partido dos excluídos, chegado ao poder.
O anúncio do padresinho seria hoje profético para um governo, nascido da força do outro Brasil, dar conta da expectativa diferente. Sob pena de nos vermos diante do equívoco de um evangelismo que, saindo da sua inspiração, vai aos novos controles de massa, ao domínio da mídia e à conquista de legendas políticas, na captura do lenitivo fácil ao sofrimento dos destituídos, pela troca do ''pão e amém''. Ou do conformismo final com a negação mesma da mudança pela comunidade e pela sua consciência, reclamada por D. Hélder. Ou do risco que enfrenta o país de fundo - perdida a expectativa da promessa petista - de soçobrar no mero e estrito tráfico da esperança, como a anestesia e a droga do ''tudo bem''.
Jornal do Brasil (RJ) 8/9/2004