Os melhores cálculos retificam que mais de 1 bilhão de pessoas, coladas às televisões ou às telas públicas, presenciaram o desfecho da Copa do Mundo. Jogaram os países com a sua auto-estima, diante das surpresas em campo, nunca a por tanto à tona o brio das nações que entravam no gramado. Os finalistas provaram na carne o quanto as equipes podiam mudar até a visão política dos governos nas suas crises imediatas. O mau desempenho inicial do time de Domenech viu-se como metáfora da crise do Ministro Villepin, mas o país saiu do marasmo cada vez mais ao se referir à “equipe de France” e ao desempenho extraordinário da sua segunda fase. A Itália esqueceu o impasse das maiorias milimétricas do seu governo e o sucesso final é de uma retomada única de confiança no futuro.
Não há brasileiro hoje que não saiba o que é Gana, nem os africanos marcaram tanto o seu mapa no mundo, com tantos finalistas na Alemanha. Nem os equatorianos voltaram para casa sem o novo orgulho nacional, como contendores da Inglaterra. Mas, sobretudo, a “civilização do medo” desarmou-se como nunca após o 11 de setembro. Qualquer intento terrorista perdia todo ímpeto, como um crime de lesa-humanidade.
Fomos dos piores a mastigar o hino, tão em contraste com os argentinos e com a Marseillaise dos franceses. Perdendo, logramos dissociar o Brasil da pestiferação que perseverará , por muito tempo pela derrota, com culpados óbvios. Não tivemos heróis no naufrágio, nem consolos no soçobro em que é toda equipe que entra no repúdio nacional. A vaia de Frankfurt foi também o começo desse novo destaque entre o país e a Copa do Mundo.
Purgamos de vez a nossa sub-cultura , nessa transferência elementar à vitória da seleção, do nosso reconhecimento internacional. Chocamo-nos, sem volta, com i nível de desinteresse nacional de cada um dos semideuses, que perderam toda a garra para transformar seus malabarismos numa vitória.
“Pois é, não deu”. São as frases dos Ronaldos, Ronaldinhos ou Juninhos, voltando ao ninho quente e milionário do Real Madrid, do Barcelona ou no Lyon. E fique tudo por aí, entre o grotesco e o melancólico. Tragédia, sim, viveu o desenlace da Copa, na desmistificação surpreendente, em campo, e de vez, do ídolo monumental Zidane, frente aos companheiros, com o repúdio de outra maturidade cívica, a que fazem jus as culturas desenvolvidas.
A França viveu nos últimos dias um processo de perigosa divinização de Zidane, super herói, rei, Júpiter, levado às loas de todas as manchetes, gritos, sussurros e vigílias, às vésperas de prélio decisivo. Não se tratava mais de canonizá-lo, mas de reconhecer a sua transcendência, sem mais comentários. Domenech podia repetir, desde o massacre brasileiro: Zidane é Zidane.
A lição surpreendente do dia 9 de julho foi a desta sadia quebra interna do devaneio de todas as siderações, em que o homem foi devolvido à sua medida, por entre os Arcos de Triunfos acesos e as luzes votivas dos Champs Elisés. A cabeçada no italiano era a desta torna do atleta a um primitivismo adormecido pelo sucesso continuado de uma década, talhada ao perfil de mármore, a cabeça tibetana e a economia hierática dos gestos e das palavras.
Não se conhece quadro de vergonha assumida, em segundos de abjeção. Diante do vasto mundo como o de Zidane, o cartão vermelho na mão. O que teria feito um japonês, fiel à sua cultura, dos kamikases e dos códigos de honra da desgraça nacional, diante do bilhão de espectadores?
Deuses não têm crepúsculos, mas morte rápida, ajudados pela dramática de futebol parcos que rondam seus pênaltis. E o novo espetáculo universal faz-se de festas e também de ritos implacáveis. Ronaldinhos, ou Cafus, ou Robertos Carlos não se deram conta, ainda, do novo silêncio que os ronda. Mas a França post Zidane não vai perdoar o seu fantasma.
A Copa deu-nos o viço novo também do que seja a cara do mundo diante do anonimato das civilizações do medo. E, quem sabe, da trégua a se alargar. O conflito se faz dos preconceitos à distância, a paz, das torcidas, como vimos nestas semanas. E a humanidade brota desta consciência da diferença lutada sem quartel – como souberam a Alemanha e Portugal celebrar os seus homens – viesse, ou não, o último gol, se buscado até o fim.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 12/07/2006