Num ano em que a realização da Copa do Mundo de futebol mistura-se com as questões políticas nacionais, críticas como as do presidente da FIFA Joseph Blatter à má organização do torneio no Brasil acirram logo os ânimos. Blatter disse que nunca viu uma Copa com mais atrasos como a do Brasil, que teve sete anos para organizá-la e está fazendo tudo em cima do laço, fora dos prazos.
Não disse, mas sabemos que esse atraso é talvez o maior motivo para os altos custos dos estádios e das obras de infraestrutura, que em muitos estados nem estarão prontas a tempo de servirem aos cidadãos-torcedores que estarão viajando pelo país atrás de suas seleções preferidas.
A reação do governo brasileiro foi imediata, e até a presidente Dilma respondeu indiretamente pelo twitter, afirmando que faremos a melhor de todas as Copas. Exageros eleitorais à parte, o fato é que ter a FIFA como inimiga nos tempos atuais é um bom negócio, pois ela aparece em vários pontos do planeta ligada a negócios escusos e a descumprimento de leis, tornando-se símbolo do capitalismo selvagem.
O embaixador Marcos Azambuja, com sua ironia corrosiva, já escreveu que a FIFA é o novo FMI, justamente pela percepção generalizada de que impõe aos países realizadores da Copa exigências que muitas vezes não estão em consonância com as leis locais, ou com seus hábitos ou necessidades.
Blatter se considera tão poderoso que foi ao cúmulo de tentar dar lição de moral à multidão que vaiava a presidente Dilma na Copa das Confederações. Jerome Valcke, secretário-geral da FIFA, se sente protegido para dizer que "menos democracia às vezes é melhor para organizar a Copa do Mundo". Seu elogio ao presidente da Rússia Vladimir Putin, que organizará a Copa de 2018, é exemplo do flerte com o autoritarismo embutido no comportamento da alta cúpula do futebol mundial.
Putin, temendo novos atentados e manifestações separatistas nas Olimpíadas de Inverno em Sochi, proibiu as manifestações públicas. A medida é tão absurda que não resistiu aos protestos de entidades que apoiam os direitos humanos pelo mundo, e o protoditador russo teve que abrandá-la, exigindo que as manifestações de protesto tenham permissão às autoridades para acontecer.
Foi o bastante para que grupos petistas menos fanáticos pelas liberdades democráticas vissem na medida um exemplo a ser seguido pelo Brasil a fim de evitar novas manifestações contra o "padrão FIFA" que não se vê nos nossos serviços públicos.
Como em junho do ano passado, as manifestações seriam ao mesmo tempo contra a FIFA e contra os governos nos três níveis, e já estão no radar dos políticos que disputarão eleições este ano e também no de Blatter, que se diz convencido de que haverá manifestações, mas torce para que o amor ao futebol proteja a Copa do Mundo da fúria dos cidadãos-torcedores.
Assim como os políticos brasileiros não souberam dar respostas adequadas aos anseios expressos nas ruas pelos cidadãos, também Blatter não liga causa e efeito, fingindo não ver que o "padrão FIFA" passou a ser ligado à corrupção tanto monetária quanto dos valores do esporte mais popular no mundo.
Mesmo que os atrasos que estão ocorrendo no Brasil sejam indesculpáveis, e a desorganização prejudique a realização da Copa, é melhor esse tipo de problema do que estar envolvido institucionalmente com trabalho escravo em pleno século XXI e promover uma competição "com padrão FIFA", mas longe dos melhores padrões civilizatórios.
É o que está acontecendo no Qatar, e não se vê nenhum protesto de dirigentes da FIFA às condições desumanas em que estão sendo construídos os estádios e as obras de infraestrutura da Copa do Mundo de 2022.
Inúmeras denúncias de trabalho escravo, de mortes por excesso de calor e trabalho, de exploração de imigrantes, tudo acobertado por leis que facilitam a exploração dos trabalhadores, surgem todos os dias sem que a FIFA tome providências reais além de, de tempos em tempos, dizer que essa situação é inaceitável.
Os problemas brasileiros são de outra natureza, mas existem e podem afetar a credibilidade de um grupo político que se dispôs a realizar a Copa como coroamento de governos populares e eficientes. Num ano eleitoral, pode se transformar em instrumento de consolidação de uma vitória anunciada, ou ser a gota d´água para explicitar o esgotamento de um projeto de poder.
O Globo, 7/1/2014