“O parlamento não é fábrica que deva recomendar-se pelo número de projetos que elabore ou pela rapidez com que os produza... Às vezes a maior virtude de um parlamento está precisamente no número de projetos que elimina ou depura, que corrige ou substitua, depois de estudo quanto possível minucioso dos assuntos.” A observação é de Prudente de Morais Neto, jornalista descendente do ex-presidente, que escrevia sob o pseudônimo de Pedro Dantas, e está registrada no livro Quase Política, de Gilberto Freyre.
Há 20 séculos, os romanos, cuja sabedoria no território do direito e da política ninguém desconhece, já haviam cunhado, por intermédio de Tácito, a expressão “plurimae leges, corruptissima republica”, que, traduzida na semântica de nossos tempos, nos adverte de que a multiplicidade das leis corrompe as instituições e, por conseguinte, confunde os cidadãos. Atiladamente, o mestre Ralf Dahrendorf, em A Lei e a Ordem, já aludira aos riscos que correm as sociedades contemporâneas, ao salientar que a anomia não é o único perigo. “O outro”, diz ele, “é o que chamamos de hipernomia, o crescimento desordenado de normas, sanções e instituições... Em resultado, nossos códigos de leis, os equivalentes modernos das Instituições de Justiniano, estão abarrotados de textos que mais confundem que esclarecem, espalhando mais incertezas que certezas e diminuindo a confiança nas normas legais, quando elas não são aplicadas.”
O hábito de imputar a esta ou àquela causa a raiz de nossos males tem sido um argumento não só inadequado, mas especialmente um subterfúgio cômodo, porém sabidamente ineficiente. Salvo se quisermos continuar acreditando, como admitiu Jean-Paul Sartre, que o inferno são os outros. O modelo político que adotamos em 1889 - republicano, federativo, bicameral (Senado eletivo) e presidencialista - está próximo de completar 120 anos. Nesse período de algumas gerações, experimentamos menos de oito Constituições. A denominada Lei Maior, o mais relevante estatuto de nosso ordenamento jurídico, transformou-se na parte mais precária de nosso edifício político-institucional. Cabe, pois, repensarmos nossos desafios e não fazer da lei um fetiche, ou seja, alimentar a ilusão de que a tinta e o papel com que as elaboramos vão mudar a realidade e remover nossos constrangimentos; e, às duas Casas do Congresso, dar prioridade aos trabalhos de consolidação de nossas leis e modernizar o processo de sua elaboração. “Editar uma lei e não fazê-la cumprir”, como afirmava com perspicácia o cardeal Richelieu, “é autorizar algo que se queria proibir.”
Nenhum brasileiro ignora que o grande número de textos normativos existente em nosso país tem ensejado, com freqüência, problemas da mais variada ordem, para todos os cidadãos, inclusive para aqueles que de forma direta e indireta estão ligados à sua elaboração (Poder Legislativo), à sua execução (Poder Executivo) e à sua aplicação (Poder Judiciário). A pletora de normas - desde nossa extensa Constituição até os decretos e resoluções, o que já se batizou de cipoal legislativo - tem causado dificuldades de monta, uma vez que parêmia jurídica consagrada universalmente estabelece que “ninguém pode deixar de cumprir a lei alegando que não a conhece”. Ora, se já é difícil conhecer tão variado elenco de leis, mais complexos serão a sua exata aplicação e o seu adequado cumprimento.
Os juristas geralmente distinguem o direito positivo do direito vigente. Para eles, o direito positivo é o conjunto de normas que regeram ou regem a convivência social - respectivamente, direito histórico e atual, de acordo com Abelardo Torré -, enquanto o direito vigente seria, como o nome dá a entender, o direito positivo que esteja sendo efetivamente aplicado. Essa distinção ressalte-se, se afigura muito importante se se pretender levantar o número de diplomas legais vigentes no País.
Eleito deputado federal na década de 70, tive a preocupação de voltar minha vista para o intrincado assunto. Na ocasião tramitava na Câmara projeto de lei complementar de autoria do deputado Henrique Turner, da bancada de São Paulo, que almejava dar régua e compasso à questão, conquanto considerasse que o assunto necessitaria de longo prazo para ser estudado e discutido. A proposição, contudo, não prosperou, malgrado o empenho do autor e de muitos parlamentares, entre os quais me incluo.
Em 1983, eleito senador, apresentei projeto na mesma direção, salientando também ser esta uma questão que muito contribui para a chamada “insegurança jurídica” que, cada vez mais, aflige os cidadãos e as empresas em suas relações entre si ou com o poder público, cujos reflexos repercutem de forma negativa para a nossa imagem no exterior.
Ao iniciar a 52ª legislatura, apresentei proposta de criação de comissão mista especial do Congresso Nacional, integrada por senadores e deputados federais, destinada a propor medidas com relação ao tema, explicitando algumas matérias que deveriam merecer prioridade no processo de simplificação.
Registro, agora, como algo extremamente positivo ver renascer no Congresso Nacional, na legislatura instalada em fevereiro, a idéia de dar tratamento prioritário à questão, por intermédio de deputados federais como Cândido Vacarezza, senadores e membros de outros Poderes da República, como o ministro Gilmar Mendes (STF), o ministro Ives Gandra Filho (TST) e o advogado-geral da União, José Antônio Dias Toffoli. Observo a propósito que a Assembléia Legislativa de São Paulo, ao tempo em que a presidia o deputado Rodrigo Garcia, realizou, no plano estadual, notável trabalho de simplificação e consolidação, reduzindo significativamente o número de leis em vigor no referido Estado.
Há razões, portanto, para não perder a necessária provisão de esperança com vista a resolver tão grande problema, pois, como disse certa feita Juscelino Kubitschek, ao se referir ao Brasil, “o otimista pode errar, mas o pessimista começa errando”.
O Estado de S. Paulo (SP) 15/6/2007