O sucesso da primeira ida de Condoleeza Rice à Europa representa a perspectiva de a atual Secretária de Estado utilizar em profundidade todos os protocolos de uma nova abordagem ao impasse europeu frente à esmagadora reeleição do presidente americano. Não se discutirá o peso de 59 milhões de votos que credenciaram de vez o segundo termo republicano, com a marca próxima de um plebiscito na reiteração da política internacional da cruzada antiterrorista e da guerra preemptiva. Por certo que o governo Bush procurou na chegada à eleição definir uma frente interna de mudança, e o fez na forma mais candente de permitir a privatização dos seguros previdenciários, inclusive com a viabilidade de trazer esta poupança vital aos jogos da bolsa. Reage o país agora num primeiro impacto a esta dimensão múltipla e onívora do mercado, que fica como o esteio do republicanismo na vida econômica do país.
Já é minoritário o apoio da opinião pública à iniciativa, no desbalanço entre as suas limitações em casa e a alforria que lhe deu a população para prosseguir no pós-invasão do Iraque. O resultado consagra o paradoxo do apego à liberdade de voto chocando-se, afinal, com a garantia de maior estabilidade das instituições. Acorreram às urnas as facções xiitas e curdas claramente minoritárias na composição do país ao eixo das forças sunitas, por sua vez também suportes dos regimes políticos até agora e do partido Bath dissolvido após a invasão, e antes mentor indiscutível, com Saddam, dos rumos do país.
A viabilidade de uma guerra civil se desenha no seu perfil clássico consolidando a ação de guerrilhas que vem crescendo no país inclusive, após a constituição do primeiro governo iraquiano de após a queda de Saddam. Não se consolida o quadro de possível retração das forças americanas, insinuado ainda há um ano, saído da propaganda para a reeleição de Bush e banido de qualquer menção no discurso de posse. Ao contrário, o que se vê no discurso de 15 dias após sobre o State of the Union, é a versão nova da denúncia do "eixo do mal", uma advertência direta à Síria em quase declaração de guerra, de par com a solenidade e o anúncio do grand design por larga perspectiva de consolidação política que normalmente marca o tom dessa única toma da palavra do presidente junto ao Congresso.
Condoleeza foi a um a um dos chefes de Estado críticos da composição da frente européia a responder à configuração afinal nada suasória do anúncio da perspectiva hegemônica, guerra de preempção que se instalou como corolário do combate sem trégua à ameaça do terrorismo internacional.
Força de resistência
No núcleo da força de uma Europa Ocidental está hoje, inclusive, o sucesso econômico-financeiro do euro, cercado por uma pertinaz depressão do dólar, possivelmente a traduzir o tempo de assimilação pelo mercado do risco perene que assumiram os Estados Unidos no elastecimento das suas fronteiras de proteção internacional. A contrapartida política deste elastecimento do risco econômico se traduz no novo envolvimento da União Européia pelos recém-admitidos países do antigo Leste Europeu. Os que já fazem parte da "Europa dos 25", a partir da Polônia, dos países bálticos ou da Hungria, inverteram o sentido da antiga satelitização a Oeste e todos se beneficiaram de uma maciça política de auxílio americano na fase anterior ao enlace na nova Federação Européia. No núcleo da antiga "Europa dos 16", a força da resistência franco-germânica à invasão do Iraque, e agora reforçada pela Espanha de Zapatero, não logrou ser desarmada pela visita de Condoleeza Rice.
De toda forma, o peso da movimentação das tropas de Assad no Líbano, não poderia evitar uma primeira e inédita convergência entre Chirac e Bush na nota de pedido de retirada ao governo de Damasco. Mas não há ilusões quanto ao freio de Paris-Berlim, quanto a qualquer grand design de permanência e extensão do processo de ocupação do Oriente Médio dentro dos princípios iniciais da cruzada americana. E neste mesmo quadro, a importância estratégica da vinculação a médio prazo da Turquia à União Européia passa a ter importância decisiva no equilíbrio de forças entre os dois atores do Ocidente no universo da "civilização do medo" criado pelo pós 11 de setembro.
A consolidação do propósito americano é exatamente na noção da defesa da liberdade na democracia do segundo governo Bush ganhou um apoio extra do Congresso americano. Saiu do Salão Oval para se transformar em projeto conjunto de lideranças como a de Mc Cain e Libermann, expoentes de republicanos e democratas. Trata-se de reconhecer o respaldo maciço da representação política do país a uma política agressiva externa americana de apoio à democracia, de promoção ativa aos direitos humanos e de derrubada ou punição dos governos ditatoriais. Condoleeza faz esquecer a presença de Powell, brandindo às supostas cápsulas das bombas biológicas ou das armas de distribuição de massa, que teriam dado razão à derrubada de Saddam.
Virou-se a página da argüição em falso. O quadro da hegemonia não é mais o de resposta a um ataque real da Al Qaeda aos Estados Unidos. As tropas que hoje embarcam podem ter, sim, e daqui para frente, o estrito propósito do missionarismo democrático. Ou de um refazimento do mundo, segundo a Declaração de Direitos dos Estados Unidos. Ou da democracia como a reclame e exija o Salão Oval, urbi et orbi.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 11/03/2005