Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Começa o mea culpa no Iraque

Começa o mea culpa no Iraque

 

A assunção pelo general Wesley Clark da liderança de uma candidatura democrática à presidência americana em 2004 abre uma nova postura crítica na opinião pública à perspectiva da Star War no Iraque. O militar celebrizou-se pela procura da paz como comandante da Nato na Bósnia e no Kosovo. E protagoniza hoje um papel para a superpotência que se recusa à hegemonia mundial, sem retorno. Clark cresceu nos últimos meses como um comentarista implacável, na CNN, da conduta das forças de Bush, levando ao atual impasse no Iraque e seu vespeiro. A campanha eleitoral começa pelo combate aos estereótipos da extrema direita americana que também ensaiam as suas armas pela pregação do programa por um Estados Unidos sem rival no século.


A espera do desfecho da captura de Saddam Hussein, o começo da visão alternativa já mobiliza, pela primeira vez, os democratas do Congresso, degelados do Patriot Act, e trazem ao debate nos Estados Unidos, agora, os incidentes da execução objetiva dos filhos do ditador, cuja eliminação constitui um puntum dolens na exacerbação dos iraquianos expostos à política do pós-guerra, oficialmente reconhecida após o primeiro de maio último. A condenação de violência dentro de violências como esta, no entender do general da paz, torna-se essencial para o desmonte da postura hegemônica, sem a qual não há desfecho para a tensão de Bagdá, e que deve começar por uma mea culpa americano.


Sabe-se, por demais, de toda mazela de horrores e desregramentos dos herdeiros do déspota, cuja derrubada de per se, argüi o governo americano, valeria a invasão do país. Mas a eliminação de Uday e Qusay entremostraram o estilo de esmagamento do adversário que se definiria como o futuro da nova Guerra de Cem Anos no Iraque. O casarão da refrega, em Mossul, entremostrou nas primeiras fotos, sem possibilidade de retoque, as paredes enegrecidas, o clarão de mais um torpedo disparado contra o balcão às escancaras, no segundo andar. Duzentos soldados contra quatro iraquianos, numa contenda de oito horas, acompanhados os tanques por todo o enxame dos helicópteros, fixada à presa certa, na minúcia das teleobjetivas.


Nenhum erro possível sobre o que se encontrar na residência, tudo precisamente delatado pelo anfitrião dos irmãos que, duas horas antes, deixara o recinto. Ao lado da dupla, um guarda-costas e o filho adolescente de Qusay, Mustafá. Na arremetida final das tropas sobrava só o menino, que disparou a pistola inteira, aninhando de imediato a lenda no inconsciente social coletivo iraquiano, para além da execução sumária dos dois procurados mor, após a queda de Bagdá, excetuada a presa máxima e ainda evanescente.


O flagrante de mortes como estas vão ao simplismo daquele imaginário, independente das razões do fato ou do ato. Sem surpresa nenhuma do que fizessem os condenados, definida a absoluta desproporção da luta, que chances efetivas foram dadas aos iraquianos, de optarem pela prisão diante do fim certo, que ditava a descoberta dos inimigos máximos? E o menino, sem a carga de qualquer opróbrio, que não se deixou escapar, ou que mais provavelmente não quis sair, até onde escreve uma contra história de decisão diante da morte, e do faze-lo bem à cara do inimigo? Mormente quando, no que se informou de saída, já era sobrevivente solitário à espera da última onda do ataque?


O presidente Bush reitera que hoje só cabe às suas tropas a tarefa de consolidação da paz e de garantia de um Iraque democrático. Nas execuções do último 22 de julho, estão todos os ingredientes de uma representação do inimigo, chegada à retina popular para retorquir, olho por olho, à política de arrasa quarteirão em nome da paz, pela violência preventiva, desanimadora das reações à cruzada americana.


O subsecretário de Defesa, Wolffowitz, e todas as cabeças da nova hegemonia, relutaram em entregar à mídia as fotografias dos irmãos destroçados. Diriam da marca da devastação que fica, no que o corpo traz as cicatrizes irrecorríveis da luta, tão fácil de ser apagada nos rombos da casa ou nos negrores das paredes. Claro, a moradia seria implodida no dia seguinte. Nenhum vestígio do cenário. Mas a maquiagem dos corpos desfigurados sobrepôs à verdade da morte o grotesco da manipulação ostensiva.


A intranqüilidade crescente no Iraque das últimas semanas porta este imaginário desnecessariamente trazido, de logo, à lenda e às novas ruminações dos clãs xiitas nas mesquitas onde se acende a instabilidade continuada, nutrida pela espera mágica. E como alimentará - já avançam alguns especialistas - o desaparecimento do menino Mustafá, os racontos das resistências a longo prazo, numa cultura dada à vigília de séculos, como atesta a sua crença nos Iman desaparecidos e não menos objeto do culto do retorno. E vai ou não se edificar neste solo do inconsciente coletivo iraquiano a fé na volta de Saddam cada vez menos contando a prova eventual de sua morte, diante da força já construída do espectro?


A visão crítica e democrática que o pós Star War vai abrir na campanha eleitoral não escapará como um de seus fulcros básicos do lidar com essas resistências subterrâneas do Iraque. A demolição física do inimigo, por mais que ostensiva, só enseja a sua recomposição, peça por peça, no irracional da expectativa crescendo, exatamente, contra toda a evidência. Clark tem diante de si, na campanha que começa, o debate desta normalização iraquiana. O supercontrole se vê condenado, a esta altura, ao implante pelos ritos do medo. O Império Romano trazia, sob grilhões, os chefes derrotados à frente dos seus triunfos, na exibição das vidas até aquela hora poupadas - independente de seu abate a seguir - para comprovar diante da plebe, o fato consumado da derrota. Os novos pró-cônsules, em Bagdá, não lograram esse gesto, mesmo quando teriam podido faze-lo, no caso de Uday e Qusay. A destruição antecipada da presa desimpede o imaginário. Tal como a tese da guerra preventiva, não elimina a volta à carga do adversário entrincheirado no seu inconsciente coletivo.


Na enorme e dificílima construção do pós-Iraque o mundo todo olha para os Estados Unidos, que parece cada vez mais ter, de novo, com o acordar dos democratas uma "ágora", ao lado do Pentágono, assentada no velho arcano das liberdades. E na crítica da nação hegemônica, que nos promete Wesley Clark, em bem do futuro do país de Roosevelt, Kennedy e Carter.




Jornal do Commercio (RJ) 3/10/2003