“Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto. [...] A vantagem dos míopes é enxergar onde as grandes vistas não pegam.”
O excerto é de autoria de Machado de Assis em crônica intitulada A Semana, publicada na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, logo no início da primeira década de 1900.
Faço tais considerações para registrar que este ano, marcado por tantas efemérides, assinala o centenário de morte de Joaquim Maria Machado de Assis, o mais citado escritor brasileiro, sobretudo por suas admiráveis incursões nos diferentes gêneros literários – romance, poesia, prosa, conto, crítica literária e de teatro, jornalismo e crônica, esta somente mais versada por autores pátrios a partir do século 20.
No jornalismo, entendido por Alceu Amoroso Lima também como gênero literário, Machado escreveu, com igual talento, como se afere de centenas de artigos e crônicas publicados em jornais desde 1870 até sua morte.
Por entender não poder passar o evento sem homenagear a expressão maior da literatura brasileira, apresentei projeto aprovado nas duas Casas do Congresso Nacional e transformado na Lei nº 11.522, de 18 de setembro passado, pelo Poder Executivo, instituindo 2008 Ano Nacional Machado de Assis.
Ao mesmo tempo, devo mencionar que a Academia Brasileira de Letras, por iniciativa do então presidente Marcos Vilaça, criou comissão com o objetivo de elaborar programação de eventos para fazer memória da estuante personalidade da cultura pátria. Essa comissão é constituída dos acadêmicos Eduardo Portella, Sérgio Paulo Rouanet, Alberto da Costa e Silva, Alfredo Bosi e Antônio Carlos Secchin.
O acadêmico Marcos Vilaça, nos dois períodos em que dirigiu a ABL, realizou fecunda e inovadora gestão. O atual presidente, o escritor e jornalista Cícero Sandroni, dá continuidade ao trabalho desenvolvido por seu antecessor, inclusive na seqüência das atividades previstas para o Ano Nacional de Machado de Assis.
Conquanto nunca haja exercido atividade política, embora fosse funcionário público, Machado de Assis sempre demonstrou interesse pelos problemas nacionais, analisandoos lucidamente, por vezes de forma irônica ou humorada e, às vezes, pessimista, usando “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”, porém sem jamais migrar para o território do insulto ou da agressão.
Prova do seu interesse pelo Brasil e suas instituições está revelado, entre outras manifestações, nas análises contidas na crônica O Velho Senado, do período imperial, constituído, como se sabe, de senadores vitalícios.
Dos senadores, fala Machado de Assis, hoje tão longínquos no tempo, guarda o País seu contributo, de forma proba e arguta, para a consolidação da Independência, pois vivíamos ainda convulsões regionais e desafios externos, como a Guerra do Paraguai, para exemplificar, e a busca de um adequado travejamento de construção do Estado brasileiro.
Observa Machado na referida obra: “É preciso não esquecer que não poucos eram contemporâneos da Maioridade, alguns da Regência, do Primeiro Reinado e da Constituinte [...] Um pouco homens, um pouco instituição...”.
Isto é, pessoas cujo desempenho transcendia a própria Casa e que se converteram em verdadeiras instituições. “O público assistia, admirado e silencioso”. [...] “Nenhum tumulto nas sessões. A atenção era grande e constante”. É o que anota o “bruxo de Cosme Velho”, como era chamado, em alusão ao bairro em que viveu no Rio de Janeiro, cidade da qual nunca se afastou.
Outro denso contributo que Machado realizou no do decaédrico campo da política, compreendida como ciência e arte do bem comum, foi através do ensaio Instinto da Nacionalidade, escrito nos idos de 1873. Cético quanto a tantas coisas, não o é, contudo, em relação ao Brasil.
Nele vê a consciência nacional brotar lenta embora, mas emergindo do sentimento da alma brasileira, da literatura às outras artes e à vida do Brasil em geral, que ainda não tinha cem anos de vida independente.
Ensinam os filólogos que a palavra texto, de raiz latina, vem de tecer. Aliás, a tessitura da obra machadiana é mais uma grande demonstração de sua enorme riqueza estilística, incomum talvez no século em que viveu e que muito contribuiu para projetar a Nação no exterior.
Machado de Assis, que freqüentou com igual “engenho e arte” todos os campos da literatura, contribuiu igualmente para suscitar novos talentos na área da cultura e com o desenvolvimento do gosto de gerações de brasileiros pela leitura e, assim, para formar uma consciência crítica com relação aos problemas do País e do mundo. Isso nos conduz a repetir com Nélida Piñon: “Se Machado existiu, o Brasil é possível.”
O Popular (GO) 27/2/2008