Perdemos com Celso Furtado a voz mas não o recado maior - de um economista exposto a um momento canônico da vida do espírito brasileiro - que exprimia um tempo de fundação da nossa mudança. Representou singular remate do que logrou o cientista social, num País de frágil vocação para a plenitude do pensamento feito obra.
Foi Celso, também, o rei-filósofo, na magistratura de ministro do Planejamento, formulador de políticas públicas originais que transbordam do saber de sua pasta, e nos deram os primeiros fundamentos da cultura, de uma das mais complexas e rebeldes áreas de ação de Estado na modernidade. E que nos fiquem, a seguir, na grande maturação, a voz profética e o ímpeto da autodeterminação brasileira, na busca da Nação para si, em termos globais, e contra toda inserção passiva, nessa arquitetura, de uma complexidade feita, finalmente, hegemonia.
Toda a doutrina cepalina surge, à época, no "momento de ouro" dessa aspiração à mudança, no fim dos 50, que Prebisch poderia enunciar como um rationale, quando o balanço de pagamentos do continente permitia-se uma relação favorável, a garantir a mudança nos termos de troca, e o início efetivo da industrialização. É tempo continuado em que, no mesmo afã do desenvolvimento brasileiro, na euforia kubitschekiana, Celso nos assegura o avanço crítico de enfrentar as suas contradições. Não só de equacioná-las mas, de saída, de atacar o problema da fratura regional e o enfoque, dentro das premissas de um verdadeiro planejamento, do que fosse a recuperação do Nordeste.
Difícil encontrar-se melhor concertação entre as políticas públicas de reorientação de investimento, a dinamizar recursos quase secularmente ociosos. Somaram-se na ação do economista maior, num dos verdadeiros legados da história da racionalidade brasileira, a luta contra a indústria do atraso e o sistema dos interesses constituídos na política orçamentária; o enfrentamento da ponta mais resistente de coalizão, entre as formas vetustas do latifúndio; e a sagacidade, pelo domínio dos clãs políticos, de assegurar-se o imobilismo, se não a esterilização do aproveitamento das receitas públicas no País. Numa perspectiva mais larga e definitiva, a Sudene acabou com uma mitologia do Brasil folclórico, de explicar nosso atraso pelo castigo apocalíptico da saúva ou das secas, ou das verbas evaporadas para a construção dos açudes em nosso semi-árido.
Os abalos políticos do pós-juscelinismo e o vaivém do parlamentarismo como trégua, para a sobrevivência da democracia, já rondada pelo intervencionismo militar, tiveram em Celso um pólo de aprumo transferido a uma primeira e ambiciosa ordenação do planejamento brasileiro. O fim do interregno autoritário vai levá-lo a fundar uma política da cultura, da superação do primarismo dos aportes orçamentários, ao preparo da filosofia das renúncias fiscais, e dos estímulos ao investimento invisível e à valorização desse mesmo intangível, que assentaria uma memória nacional e o aprofundamento do nosso reclamo identitário.
Não tem rivais, Celso Furtado, na tomada de voz do arcano, exposto ao trauma dos retrocessos e avanços de nosso desenvolvimento, para nos dar a certeza final da sua sustentabilidade. Sua palavra é a desses definidores de horizontes históricos, quando é todo novo vertedouro de um processo social que se verga à quase fatalidade da globalização, condenando-nos à perpétua conjuntura
Deve-se a Furtado não só o aponte do norte grosso e ineludível como convém à voz imperiosa dos profetas, mas, em tempos do mais solerte e final desarme do Estado, a cobrança da retomada da sua presença na nossa vida econômica, atingida pelo envolvente processo das privatizações. A voz do octogenário está aí, a primeira a mostrar o capital de barganha externo que guarda o País, no manter as estruturas públicas, como a da Petrobras ou do aparelho energético remanescente, ou da potencialidade da iniciativa governamental como indispensável à volta estratégica da empresa nacional.
Vivemos momento crítico, no que o pós-guerra do Iraque reorganiza as constelações econômicas do primeiro mundo; nos deixa com esperanças minguadas do que seja, ainda, a racionalização desses mercados, a partir da primeira esperança das mudanças de Cancún, quanto à Alca, ou da OMC, a garantir uma política de exportações sustentáveis para a afluência do primeiro mundo. E só começam os emperros para darmos validade econômica a um mundo transcontinental da ação periférica, tal como vislumbrada, ainda há um ano, entre Brasília, Pretória e Nova Déli.
Deu-nos Celso as certezas de uma caminhada do alerta e do espancar das pseudos-saídas em função do exercício severo e castigado de um desejo de nação, do ver claro do profeta contra o pessimismo esperto dos cálculos do imediato, como Celso nos ensinou o planejamento dos reis-filósofos, contra o mero brandir das contabilidades da eficácia abstrata. Vai ao fundador da Sudene o que o Brasil espera da lucidez, para merecer a esperança sem retórica.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 03/12/2004