Estive recentemente na penitenciária Jonas Lopes de Carvalho (Bangu 4) para negociar, em prestações, uma dívida, a que respondo sem demora, com a própria visita ao cárcere. Antes de assinar as promissórias da dívida, lembro do adágio que diz: após a sentença, o delito e a pena deixam de ser uma questão estritamente jurídica, para atingir uma questão de ordem moral. E para os dois lados, os de dentro e os de fora da prisão. Ambos constituem a mesma porção de humanidade.
Com a professora Fernanda Lopes, coordenadora de inserção social, chego a Gericinó segunda de manhã, dia de renovação, após a visita das famílias na véspera. Com o diretor do presídio, Marcelo da Hora dos Santos, entro nas alas e cumprimento a todos, que me respondem com educação. Como é difícil encontrar a temperatura das palavras. Não tanto o que dizer, mas o modo e a forma. Alguns degraus acima, o colégio estadual Professora Sonia Maria Menezes, em que atuam professores de qualidade, conscientes de seu papel, cujo trabalho abrange diversas atividades, dentre as quais a biblioteca, administrada por um monitor.
Converso em todas as salas com os alunos. E depois com os professores, para quem a escola não constitui favor, mas direito dos seres humanos, como o acesso universal à educação, defendido pelo diretor da escola, Ronaldo Almeida. Tampouco os alunos são classificados como artigos do código penal, do que fizeram ou deixaram de fazer. Cada qual é visto em seu projeto de futuro. Sabemos, com Paulo Freire, que a educação é uma prática para a liberdade.
Atitude rara a de Bangu, porque a velha lógica da prisão é a de um monstro ciumento, que raramente se desfaz de suas vítimas, mesmo após a liberdade. Monstro que aposta na reincidência, na marca de um passado sem remédio, de um estigma. Eis a fisiologia e a anatomia da prisão, esta sim, desenganada e prestes a morrer.
Creio firmemente no programa de educação e formação técnica que ocorre em Bangu. Vejo com grande interesse a remição da pena, através da leitura, em diversos estados do Brasil. Tenho como urgente a criação e o aperfeiçoamento das bibliotecas, dotadas de livros novos, com variedade e qualidade, não se limitando exclusivamente a conteúdo didático, paradidático ou de proselitismo religioso. Bibliotecas que sejam desenhadas com estatuto real de emancipação, da literatura como janela para o mundo, fonte de reflexão e encontro da esfera subjetiva. Da leitura como um gesto coral, em que se articulem as vozes dos que ainda não foram ouvidos ou não se fizeram ouvir. E assim poderemos apostar num direito penal mínimo, revestido de compromisso maior e dignidade. Sem as misérias do processo penal.
Ao deixar Bangu 4, penso em “Recordação da casa dos mortos”, quando Dostoievski deixa a prisão, invocando, como um raio, a liberdade. Vida nova àqueles que pareciam mortos, e que entretanto renasciam como a Fênix.
O Globo, 30/10/2013