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"Campus" contra a violência

 

O impacto da violência nos "campus" da Estácio de Sá em março último, chegando ao tiro que acidentou para a vida a estudante Luciana de Novaes, levou à mobilização permanente das universidades a enfrentar esse risco endêmico e estrutural das megalópoles.


O Rio é, para todo o País, hoje, laboratório de inquietação e de busca de saídas. Sucederam-se os encontros, buscando oferecer cooperação ao Governo federal, numa iniciativa que se concretiza, a 1º de setembro próximo, em reunião do Fórum de Reitores do Estado com o ministro da Justiça, Marcio Tomás Bastos.


Todo o teor dessas diversas propostas acompanha, entre outras diretrizes básicas, a do atual secretário de Segurança do Governo federal, Luis Eduardo Soares, de que é impossível separar o ataque de fundo à violência, de um intenso trabalho de recuperação comunitária de nosso tecido social, e nele, do avanço da consciência cívica das populações, expostas à fronteira da nossa marginalidade coletiva.


O rol dos nossos "campus" nesta senda abrange o trabalho de assessoria judiciária aos favelados próximos; o desenvolvimento de cursos de alfabetização e das tarefas de saúde, muitas vezes ligados aos hospitais universitários, e mesmo, como a UFRJ ou a Unirio, entre outras, o apoio à educação artística e a abertura ao desempenho cultural, destampando a explosão criadora dos barracos. Nesta dimensão se promove a auto-estima destas populações, a pedir já o passo seguinte, que é o apuro sistemático da cidadania.


Nela há que reforçar a dignidade dos grupos marginalizados, pela reivindicação própria e continuada de seus direitos. Não é outro o exercício do que os cientistas sociais, hoje, chamam de capacidade de litigância, ou de cobrar-se do Estado os múltiplos deveres que, pela sua omissão, acarretaram, de modo geral, um quadro de descalabro, ou de passividade coletiva, ao fato consumado do narcotráfico. Neste vácuo, o banditismo institucionalizado torna-se alternativa à provisão das necessidades sociais reclamadas pela vida comunitária.


Essa violência, assentada e até imperceptível, começa pela carência de acesso aos serviços mínimos de utilidade pública, da falta da água à das estruturas sanitárias e da segurança, que são precondições até para as demandas mais alardeadas - que fazem o cavalo-de-batalha da dita reivindicação social das populações destituídas - no grito pela educação, saúde ou moradia. Trata-se de dar, aliás, vigência a um dos dispositivos mais ricos da Carta de 88, e o arsenal de defesa da cidadania que ainda não veio ao exercício efetivo da cultura política e jurídica do País.


O art. 129, inciso II, da Constituição, fala da responsabilidade que o Estado tem diante do cidadão, e deve se exprimir pela competência do Ministério Público, em todo gênero de abuso face à pessoa, tanto pela negação destas medidas básicas, quanto pela insensibilidade à sua cobrança. A omissão do desempenho público culmina na muralha oposta à reclamação continuada, caída na visão cínica da coisa pública.


Esta frustração permanente é, aliás, a própria raiz da deterioração comunitária da favela, por onde começa o acapachamento frente às ditaduras de chefetes, mais ou menos providenciais, criminosos ou não, que se transformam no sucedâneo do Estado provedor.


Na pauta de propostas das universidades ao ministro Tomás Bastos está o oferecimento de cursos de cidadania e de aprofundamento da agenda de direitos humanos. Mas há que ampliá-los pela experiência da litigância. Ou seja, do exercício objetivo de cobrança do passivo do Estado na oferta das condições de vida da marginália brasileira.


Quase Cidade-Estado, entramados os espaços públicos, no capricho de nossa geografia, o Rio emerge como a "ágora" grega para afirmar-se o intento inovador. É o que fez brotar a iniciativa das promotorias legais, que permitirão, a partir da constituição de lideranças nas favelas, com a cooperação das universidades, dar vida àquele encargo ainda congelado na Carta.


As promotorias legais populares teriam a condição objetiva de recolher as demandas dos cidadãos - e a imunidade para fazê-lo, no entrosamento com o Ministério Público, para dar-lhes curso e cobrança, diante das máquinas Executivas ou Judiciárias do Estado.


Estas promotorias assentarão um espaço novo de cidadania, junto às biroscas, ou pátios, ou quadras das favelas, realizando o que, de saída, é essencial para se protagonizar, pedagogicamente, a virada de um quadro de verdadeira anomia comunitária. Ou seja, o do descarte do desvalido, esvaziando toda a expectativa de que se possa ter melhores dias na favela que os garantidos pelo protetor bandido, mas útil e atento à provisão das necessidades básicas dos seus tutelados.


Nada há de mais gasto do que o discurso das boas propostas. Mas, via de regra, falta-lhe o empenho objetivo, e prático, que catalise uma iniciativa e cobre os seus resultados. Fortalecer-se o poder reivindicatório do favelado é o remate do imperativo da cultura cívica que, de logo, se pode despertar, se não permanecesse a idéia de que o pobre é um brasileiro de segunda classe.


Seu sonho de consumo é o mesmo, tal como idêntico o reclamo pela grife suntuária. Não é por um imaginário apoucado, que não se generaliza o refino do bem viver, e o procurá-lo a todo custo, do supérfluo ao básico dos direitos humanos.


O que avance o "campus", nesta empreitada, luta contra o castigo do País subdesenvolvido, o de se acomodar a inércia generalizada, e à mais insidiosa das responsabilidades: a de ser culpado pelo que não fez, ou deixar em meio do caminho. E à vida pública, em geral, a universidade adiciona, neste esforço, o marcador que é só dela: o da impaciência dos moços, no face a face do que cobre, ano a ano, uma nova geração brasileira, da pobreza que fica, do clamor que se cala.


 


Jornal do Commercio (RJ) 29/8/2003