O Governo Bush, revigoradíssimo nas urnas, não perde tempo em mostrar o quanto o seu novo mandato lhe permite escalar no avanço da hegemonia americana, e da garantia de sua defesa para além das próprias convenções internacionais que assinou. O fulcro aí está, no buraco negro de Guantánamo e do sustento de um trato unilateral e discricionário dos cativos da Al-Qaeda, a partir da leva de meio milhar de afegãos já há mais de dois anos na prisão do Caribe.
Em 8 de novembro passado, o juiz Robinson, do distrito de Washington, declarou, em alto e bom som, que todos esses julgamentos deveriam obedecer à cláusula 5 do III Acordo de Genebra, que define a condição dos prisioneiros de guerra e de seu julgamento por cortes marciais, obrigadas ao escrupuloso respeito dos direitos dos acusados. Vai a invectiva do Judiciário ao reconhecer como inconstitucional a conduta do presidente, que criou as Comissões Militares de Guantánamo, no imediato estrondo da queda das torres, e subordinou o que definiu como terroristas a julgamentos de exceção. Os órgãos encarregados deste processo teriam absoluta discrição para limitar as provas contra os acusados e estabelecer, na prática, julgamentos sumários para a sua condenação.
A importância da decisão de Robinson, dias após a vitória estrondosa de Bush, abriu editorial no New York Times, acompanhado por apoio na imprensa liberal dos Estados Unidos, logo ecoada pelo Boston Globe. O remate da declaração nova-iorquina é categórico. No recorrer a Casa Branca da decisão de Robinson, confronta o divórcio entre os procedimentos de Guantánamo e a manutenção de um Estado de Direito dos Estados Unidos.
A sentença de 8 de novembro, aliás, vem na seqüência natural de um primeiro alinhamento da Suprema Corte americana, em junho último, sobre uma primeira questão-chave. Ou seja, a de reconhecer, de vez, que todo prisioneiro de Guantánamo podia sair do seu vácuo jurídico, pleiteando habeas corpus e cobrando respostas do Judiciário americano.
A reação da Presidência, entretanto, nas horas seguintes à sentença-bomba da Corte da capital americana, foi a de não deixar dúvida quanto a por onde vai nesta matéria, e do quanto as intervenções no Afeganistão e no Iraque ficam no estrito alvedrio do Salão Oval, na sua avaliação quanto ao status dos direitos humanos, na emergência pós o 11 de setembro, frente à comunidade internacional a que se vincularam os Estados Unidos, e neste particular, a partir da expressa vinculação às Conferências de Genebra.
A grande imprensa liberal americana, e exatamente frente a essa crescente correção do Judiciário ao impasse de Guantánamo, exprimia o voto de que um primeiro sinal do congraçamento dos Estados Unidos pós-eleição fosse a saída de John Ascroft, do Departamento de Justiça. É o que cai por terra quando o seu substituto será Alberto Gonzalez, o primeiro latino a chegar, ao ministério Bush, advogado texano da copa e cozinha do presidente, harvardiano de todos os méritos, mas, exatamente, o maior defensor do estatuto de "combatente insurgente" para os prisioneiros do Al-Qaeda.
Seu discurso é o da maior contundência, no sentido dos descartes da Convenção de Genebra, dos recursos contra manifestação da Suprema Corte, e de que continue o julgamento dos cativos, à luz da estrita segurança americana, e não do princípio da validez, urbi et orbi, do contencioso e da ampla defesa dos acusados, no quadro dos conflitos internacionais.
E, de logo, e em favor da decisão de Robinson, evidencia-se as conseqüências práticas no reverso da moeda, ou seja, dos presos americanos nestes mesmos confrontos globais. Que destino terão os soldados americanos, presos em combate, se os seus captores usarem a mesma regra e negarem a validade das normas de Genebra, para todo tipo de guerra, mesmo não sejam os oponentes dos Estados Unidos um estado soberano? Não foi outra, aliás, a invocação feita pelo governo Clinton, quando soldados americanos foram expostos, à mesma ameaça quando detidos por senhores da guerra e tribos à época da invasão da Somália.
Nesses tempos de agravamento da prioridade da segurança americana, frente às expectativas de uma ordem jurídica internacional, os primeiros lances da nova presidência têm o respaldo aparente da força inédita dos seus 59 milhões de votos. O aponte de Gonzáles se torna paradigma, nesta lua-de-mel com o futuro, fruído pela antecipação do que vê Bush como o destino americano. Carro-chefe da mobilização eleitoral dos últimos 15 dias, foi, exatamente, o de perguntarem os republicanos se deveria um novo governo subordinar-se, em matéria de segurança, a qualquer ditame das Nações Unidas.
O não aplastador estende-se para muitos a um veredicto contra as Convenções de Genebra. Mas neste extraordinário país, da fundação Jeffersoniana da democracia, aí está esta demonstração da independência de poderes na decisão do juiz Robinson sobre Guantánamo. A queda das torres não derruiu o pluralismo das instituições, e a defesa das liberdades básicas contra a civilização do medo que não foi, afinal, plebiscitada, pela força do "bis" de Bush.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 26/11/2004