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Bush e a hegemonia compadecida

 

Essas vésperas do segundo tempo do Governo Bush abre todas as interrogações quanto ao reforço que os 59 milhões de votos deram ao homem da Casa Branca. O mandato pode ser claramente entendido como a consolidação da hegemonia americana, assumindo, por inteiro, a responsabilidade de criar-se uma "civilização do medo". Foi entre as ruínas fumegantes, ainda, da queda do World Trade Center que se desenhou o porte real e objetivo do gverno Bush até então errático, sem foco, no responder ao ideal histórico dos republicanos no Salão Oval.


Claro que estas perspectivas já se encontravam na guinada de fundo que, afinal, o Great Old Party lançara, como um divisor de águas no trato, pela grande nação, do destino de sua prosperidade. A brutal redução de impostos anunciada, já durante a campanha, por Bush, favorecendo contundentemente os mais ricos, somava-se à desenfatização pública nos programas de previdência e saúde - aproveitando o impasse mais sério de Clinton - e, de vez, mandando às urtigas as preocupações ecológicas dos Estados Unidos.


O enorme apoio da grande empresa, no setor de extração de recursos minerais, e do imediato aproveitamento das reservas do Alasca mostravam, de saída, na recusa do Tratado de Kioto, o sentido imediatista da prosperidade americana no esquematismo dramático e quase elementar do que fosse uma economia de mercado, sua implacabilidade, sua falta de rebuços ou cuidados no dizer a que veio.


O novo nascia, entretanto, no horror histórico que o 11 de setembro oferecia aos primeiros meses de um Bush errático na Casa Branca, a fazer notícia, sobretudo, pela variedade das diversões do fim de semana e a empunhar, de repente, a resposta americana à queda das torres, no instantâneo deflagrar da cruzada punitiva de Washington.


A bandeira de logo se queria como de todo um Ocidente desfraldado, e tendente a ver, por detrás dos terroristas ostensivos, um adversário delineável ainda que jamais confesso, como o da cultura islâmica, de onde surgia todo o bando de Bin Laden e da reiterada agressão aos Estados Unidos.


As primeiras indicações do segundo mandato de Bush tornam inequívoca a consolidação desta perspectiva. Não é Rumsfeld que sai, não obstante os horrores de Abu Ghraib, o aumento do massacre diário no Iraque, e todos os impasses ao propósito da modelização democrática do Oriente Médio, como o rationale de fundo da hegemonia bushiana. Abandona, sim, Powell a Secretaria de Estado - visto ainda como o freio ao propósito de Cheney, com a clara ascensão de Condoleezza Rice, como segunda mulher - após Madeleine Albraight - chegando ao segundo posto do Executivo americano. Igualmente, o hesitante Secretário da Segurança e da Paz Interna, principal executor do Patriot Act, e antigo Governador de New Jersey, abandona o cargo, talvez na antevisão da nova dobra fundamentalista que assume o mandato bushiano.


As primeiras palavras de Condoleezza evidenciam todo o caminho da ideologia do segundo tempo, que ganha a força de um verdadeiro plebiscito, para o endurecimento de Washington, não só após a vitória sobre os democratas mas especialmente o silêncio com que a oposição consolidou o seu primeiro conformismo com esses fatos consumados. Tal não quereria dizer ainda que, por essa vez, não se repetiriam as práticas normais de uma disputa eleitoral, no que os dois Hemisférios da opinião pública americana se colassem sempre após o pleito. E ambas as bandas se reconhecessem diante do interesse e da visão de base do país de retorno das urnas.


Condoleezza no parquíssimo que ainda é o seu anúncio no que será o seu desempenho na pasta, não deixa nenhuma dúvida quanto ao grand design do presidente nas linhas e na frase que exatamente ajudou a pôr na boca de Bush. Será sua a tarefa de levar a democracia a todo o globo, consoante o propósito missionário que já se impôs no Iraque. Ou seja, do regime segundo o exatíssimo padrão americano, eliminada toda diferença ou expressão local do conceito de autonomia política.


Nos seus tempos já de professora em Stanford, e nas cercanias do Hoover Institute, foco dos mais reputados de definição dos Estados Unidos grande potência, e seus direitos a definir a pax americana, Condoleezza se identifica a este ardor da modelização política, tanto quanto da normalização do mundo. Distancia-se cada vez mais dos democratas, à frente o senador Leahy, de uma mudança do Patriot Act, ou do regime de contínua subordinação da sociedade civil aos padrões de alerta e de uma nova agressão terrorista. Sobretudo, não se aguarde qualquer imperativo de retorno às Nações Unidas tanto se agravam agora as dúvidas sobre as eleições do Iraque em janeiro próximo, como capaz de escapar ao simulacro de uma verdadeira manifestação de liberdade.


Os reparos expressos por Kofi Annan à próxima operação eleitoral no país de Saddam Hussein encontram a parede americana, ao mesmo tempo, que demonstram a fraqueza crescente das Nações Unidas em de fato se manterem como o lugar do debate e das negociações de uma nova paz mundial.


Doutra parte, e a mostrar a esplêndida tradição das liberdades nos Estados Unidos, aí está o juiz Robinson, do 2 Distrito de Washington, a considerar inconstitucional os procedimentos de Guantanamo e o trato dado a meio milhar de afegãos e outros "insurgentes combatentes", uma categoria internacionalmente inexistente, e em inadmissível confronto com o trato de prisioneiros de guerra definido pela Convenção de Genebra. O primeiro lance possível, de confronto com a eleição-plebiscito, nascerá do acompanhamento que, junto à Corte Suprema venha a ter o desfecho do caso, podendo até implicar num impeachment, ao mesmo tempo que o segundo juramento de Bush se faz com a força inequívoca do seu assentimento nacional.


Anteriormente já, o segundo mandato de Reagan como precedente próximo ao bis de Bush, situou-se como de uma surpreendente abertura ao status internacional de superpotência remanescente, nem por isso descuidada do reforço das Nações Unidas ou das ententes como Ocidente reconhecido em blocos distintos e em relação com Moscou após a queda do Muro, sem mais tratar o ex-antagonista como o "Grande Satã".


Deparamos os testes imediatos de largueza, ou não, de vista, assegurada às novas conversações Israel-Palestina, aos conflitos da Europa dos 25 frente à antiga aliança dos 15, à discussão do ingresso da Turquia neste bloco, abrindo a variação já de culturas e a voz de um Islão, no segundo bloco do equilíbrio mundial. Estão, sim, todos esses casos diante de tensões que se rasgam antes do novo mandato. E o Bush do próximo 20 de janeiro sabe que não pode elidi-las na cobrança de horizontes de um presidente que começou com a menor das maiorias - a infinitesimal do primeiro mandato - e que deixa o mundo, hoje, diante da nitidez aplastante da segunda vitória. O mundo que se identificou aos eleitores de Kerry aposta in extremis numa hegemonia compadecida, no estilo e na surpresa do outro republicano, amadurecido no Salão Oval.


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 24/12/2004

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 24/12/2004