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Bobo sabe, o intelectual cala

 

Há mais de ano, Adauto Novaes programou, no debate que ora explodiu, a temática sobre o silêncio do intelectual. A perspectiva era ainda, no momento de primeira estabilidade petista, perguntar se, diante de uma possível mudança de estrutura da vida nacional, do papel do pensador no seu seio, estaríamos saindo, de vez, e do papel do acadêmico como ''sorriso da sociedade'', ou de seu demolidor ferrenho, na proto utopia de esquerdas ainda jejunas do poder?


Toda reflexão já apontaria a possível encontro tardio do papel das idéias, trazidas diretamente a um horizonte histórico e a sua possibilidade de mudança dentro dessa específica cultura brasileira. Distinguimo-nos dos americanos, que vêem o conhecimento, no campo estrito da verdade e sua especialização universitária, numa discussão, remota, sempre à opinião pública. Este perfil mal despontou no Brasil, na meninice ainda da nossa ciência política, mas não obstante da aceitação que seja cobrada nos momentos de crise e da insuficiência jornalística, para entender os fatos que vão além da sua intriga, ou do seu teor de malícia ou conspiração da hora.


Acompanhamos a invenção latina, e sobretudo francesa, quando o literato ou o pensador, de fato, veio à tribuna, dobrou atitudes, corrigiu a opinião pública, tal como no começo do século 20, do J'accuse de Zola. Os anos de Sartre e dos Tempos Modernos foram a da organização do intelectual na máquina de guerra da revista, na toma da palavra, sempre, e no esclarecimento do dia a dia do ''que fazer''. Cada instante repta uma visão mais profunda, do que essa mesma modernidade envolvia de lógicas inconscientes, de sacralização de um status quo, de refino da dominação, ou do reconhecimento de perspectivas realmente libertárias de uma ''toma de consciência'', ou de uma compreensão deste entender que muda o mundo, que muda o entender. Não há como incriminar a tarefa do ideólogo que supõe, por força, o intelectual e o cientista. Mas que já condensa na ação sobre o imediato o desencravo das rotinas dominantes, e leva às pressões sociais tão decisivas para possível ''virada de página'' de um processo político.


Fala o intelectual como a chuva chove. E tem razão de o repetir às escâncaras e na temeridade básica desta conduta social, Chico de Oliveira. Não é concebível uma visão da realidade que, de imediato, não se apetreche da sua crítica e, especialmente, numa sociedade em mudança, em marco decisivo de realiza-la ou perdê-la. As certezas fundamentais prescindem, para o intelectual, da precisão de uma última verdade. Refletem esta condição limite, ou este vestíbulo onde está em causa toda uma visão de mundo e o papel da cabeça é atentar às lógicas profundas, do mudar ou submergir às semiconvicções da oportunidade de o fazer.


Mencheviques não mudam a história e não se pode atrasar a crueza das verdades, que tem no seu anúncio, exatamente, a moção da sua própria dialética e sua elucidação posterior. Fala o intelectual porque o seu ethos é exatamente o da retórica de pôr-se sempre ao risco deste anúncio que o torna vetor e pólo da tomada de consciência que se amplia. Não pode Marilena Chauí, nesta toada, calar-se por perplexidade, diante do entendimento todo, do que se passa no momento de crise. Por isso mesmo que reproclama o dever de falar e reconhece que hoje o debate está aí, a todo canto. Não lograra furtar-se à verdadeira e extraordinária ágora em que o Brasil se debruçou no fustigo das CPIs.


Mais importante ainda é esta toma da palavra por quem, de maneira tão incisiva, tem plena consciência de que a mídia está em processo de expropriar, de vez, esta mesma fala. Como assinala Baudrillard, nosso campo social da comunicação já se trocou no simulacro tolerado do discurso. Diante dele Marilena não tem mais a comovente liberdade que argüi, de falar; não falar, ou falar quando quiser. É já, e na antecipação do que não poderá ser mais dito que o intelectual, se expressa ainda, nesta melancólica, fin de partie, a que se refere George Steiner. Nas realezas absolutas, antecipando o espelho dos simulacros de hoje, o bobo - programado - sabia, falava por quem não podia fazê-lo, mesmerizado pela corte. Não há o luxo de um amanhã para Marilena, diante do que ainda escape à formatação mediática, sobretudo quando, num quadro como o nosso, o inconsciente coletivo escapa da opinião pública - e guardaria a chance ancestral da espontaneidade dos marginalizados - e suas evidências, ainda. Chegaremos a tempo de formular um testemunho de sentido, par assentar a reserva precisa da desconfiança do Brasil de base, quanto aos clichês e os fatos consumados do ''outro Brasil''?


Numa chipa em que a sideração no debate das CPIs cuida uma verdadeira ágora grega. Socializamos numa ágora única este debate e, nele, a exigência do intelectual se precipita no dever da toma da palavra e de chamada à consciência nacional. Dúvidas, sais de incertezas, precisões metodológicas, que fiquem no fórum individual destas dúvidas. Mas faz parte da ética social - esta que exatamente configura e tão só o intelectual - o assumir in totum o risco de pôr em marcha o debate com as suas meias certezas ou começo de verdade, acreditando neste em si objetivo de uma percepção que vai adiante. Nem outro foi o alerta de Sartre ao convencer-se de que o colonialismo era um sistema, e acolher, de imediato, a intuição, por exemplo, de Franz Fanon, nas invectivas sem dossiê, contra a dominação, e a chamada, de logo, à consciência da Europa saída do após guerra de 45, e de um longínquo acordar para as contradições de suas periferias. Nem também há como destravar os freios ao cuidado universitário com o conhecer e sua detergência, ou emprestar o luxo da sua dúvida à tarefa suja do pensador, nos seus Tempos Modernos e suas urgências.


Na matriz de um pensamento como o de Marilena ecoa o recado de seu mestre, Merleau Ponty ao que se soma o de Sartre, no compromisso do intelectual com a sua práxis dirigido ao ameaçadíssimo PT, das velhíssimas novas vanguardas do Brasil jejuno da mudança. O problema da vigência num país subdesenvolvido, por onde passa o veio de Lula e seu suporte político, não cumpre a sua tarefa por uma sinalização dos socialismos clássicos. Mormente, diante da fragilidade extrema com que o governo petista chegou ao poder, diante da eterna conjuntura e suas areias movediças que marcam a sobrevivência do Brasil na globalização e suas regras de jogo sem alternativa. Não se trata só de reconhecer o rigor teórico com que hoje se processa a visão utópica do socialismo hibernado após o colapso do Muro sob o peso da reificação ideológica, e da passagem das velhas lógicas da dominação às da hegemonia, suas preempções, seu abate da alteridade.


O Campo Majoritário trouxe ao Planalto as mesmas linhas de força da Articulação, que, desde saída, assentaram na prática do PT, cuja diferença não ficava no rigor programático, nem no moralismo de princípio, mas no cavar o caminho de uma nova correlação de forças políticas e sociais, capazes de assegurar, de vez, a ruptura do status quo brasileiro. O aguilhão desses dias únicos é o da urgência do passo dialético do que aí está, sem cortes higiênicos nem depurações, nem curativos para os hematomas interiores das nossas veneráveis vanguardas. Expomo-nos a perder a busca do seu sentido, desamparado dos esquemas globais de entendimento, orbitado sobre ideologias que começam, em bruto, transpondo as exigências da ética de mudança. A práxis passa, sim, pela teimosia na esperança, pela crença espessa na sua persistência, confiando em que o impulso bruto do seu apoio de fundo prevalece sobre as desestabilizações nascidas de um ''mal-estar'', que não são seus e de uma ''indignação'' pública que sepulta as primeiras prioridades nacionais. Não voltamos a este momento na crença da estepe, no advento inexorável dos socialismos, quando deparamos um racha potencial entre dois Brasis.


A massa que a CUT, o MST, a UNE, os movimentos sociais podem levar à Praça dos Três Poderes é muito maior que a dos caminhões do aparelho, e os sanduíches e brindes que distribua. Não há como Lula modorrar na retomada da iniciativa histórica, tanto quanto foi o PT que, há 30 anos nos tirou do caminho do Sendero Luminoso, ou das Farc, da ''guerra sem fim'' do separatismo colombiano. Os intelectuais não podem se prostrar a uma dialética, de ademanes e sais do desgosto, diante do dilema sem volta que representaria, não o desencanto das vanguardas, mas a quebra do horizonte do ''Lula lá''.




Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 22/10/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 22/10/2005