Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Antes da civilização do medo

Antes da civilização do medo

 

Diante da fatalidade de um novo quadriênio Bush toda uma inteligência mundial começa a desenhar cenários para o mundo da hegemonia, e cada vez menos, do multiculturalismo, como resguardo da diferença diante de uma "civilização do medo". Aceleraram-se desde o 11 de setembro as tentativas de alentar ainda o que seria quase, numa respiração boca a boca, o intento dos diálogos culturais. E, significativamente, foi o outro lado que pressentiu, de imediato, a ameaça de um universo unitário, a partir do apelo feito por Khatami, à conversa permanente e aprofundada entre os mundos partidos pela desconfiança radical, transformada em terrorismo.

Mais se passa em câmera lenta o abalo das torres, mais a agressão do Al-Qaeda revela uma dramática purgação histórica de um inconsciente social gigantesco, que começa a perceber a expropriação da alma coletiva que veio de par com os benefícios do dito progresso. E quando o Presidente do Irã foi ao recado in extremis, dava-se conta de como o seu país chegara a convulsão exemplar, em que se confrontaram o regime dos Xás e do Ayatolá Khomeyni pelo corte da consciência oposta ao que as vantagens civilizatórias acarretavam como terraplanagem identitária nas demais culturas.


Da mesma forma, um fundamentalismo explodiria pela posição defensiva resultante do ataque do 11 de setembro, do rearme militar logrado pelo Patriot Act, e a sua justificação perpétua pelo perigo terrorista, nas guerras de Cem Anos que poderão implicar. Seria inevitável que o país agredido na sua medula, voltasse às origens para mostrar as próprias cores e o último tabernáculo, atingido pela queda das torres gêmeas. A catástrofe acelerou todo um enorme corte na tensão entre civilização e Ocidente; neste, entre o seu eixo saxão e a dimensão latina, expelida à sua periferia.


Experimentamos a deliberada reificação do inimigo como alvo reconhecível, passando do braço armado do Al-Qaeda ao Islão, como o inimigo potencial ou, de qualquer forma, a área mundial sob suspeita, como primeiro foco da ameaça mortal endereçada a Washington. A Academia da Latinidade surgiu como esforço para responder, no quadro do pluralismo, à luta contra os clichês, que permitiria ainda uma tentativa de retomada do diálogo, sem ilusão quanto à resistência da armadura intelectual dos corpos políticos desse começo de século.


O que as eleições do próximo 3 de novembro vão consolidar é a última polarização da perspectiva de um Governo Bush, forrado da vitória para atingir, de vez, a uma tranqüilidade hegemônica. De roldão vem o impasse sobrevindo a União Européia pelo plebiscito de sua Carta Magna; a compressão de Paris e Berlim, pelo anel oriental do Velho Continente, hoje subordinado à mesma satelitização, só que do outro extremo, em que Washington se substituiu à Moscou; a definitiva imposição de modelos como a Alca para as periferias de cá, numa modelização final das relações centro-periferia.


É a própria intelectualidade americana que se dá conta, cada vez mais, da rapidez dessas mudanças de cenário. E a latinidade se transforma num instrumento, ainda, de uma toma possível de palavra, frente ao fundamentalismo redivivo, na volta dos Estados Unidos à identidade WASP, ocidental, anglo-saxã, protestante.


O mundo da maior liberdade e do arcano de Jefferson, Wilson ou Roosevelt se confronta hoje ao fechamento Bushiano, em que se somam como interrogações a sobrevivência da identidade afro-islâmica, que se seguiu à festa da diferença, resultante da definitiva conquista dos direitos raciais; os temores de dissonância identitária que podem representar os chicanos, e as demais correntes latinas, no seu peso, hoje, na Califórnia, no Novo México ou na Flórida; à visão reducionista da América, que assegurará aos seus eleitores para um bis o atual inquilino da Casa Branca.


A Academia da Latinidade, agora, de 6 a 8 de outubro próximo, vai abrir esta nova interlocução. Depois de, neste quadriênio, buscar, e ser testemunha, da diferença com o mundo do Islão, indo a Teerã, discutindo, do ideológico e do racional, no processo de modernização: debatendo os riscos de uma visão integrista da realidade, frente à sua reflexão permanente. Não sem razão este diálogo deslocou-se do Irã aos focos ocidentais da Latinidade, em Paris, Rio de Janeiro ou Lisboa. Voltou à Alexandria e agora, após os debates com as expressões iranianas e árabes do Islão, a Academia quer, em Istambul, o ano que vem, expor-se à visão da Turquia, vencida a ocidentalização de Ataturk e entendidas as novas dimensões do país, às margens do Mediterrâneo, e hoje com voz, também, das Repúblicas corâmicas, saídas da União Soviética.


Jean Baudrillard, Alain Touraine, Edgar Morin, Gianni Vattimo, estão entre os primeiros pensadores da pós-modernidade que têm acompanhado esses diálogos, e trazido o seu diferencial a que se mantenha o mundo das diferenças e se o possa ampliar, nas pressões da hegemonia diante da Latinidade nos Estados Unidos.


Os debates de Nova York supõem a colaboração das Universidades como a NYU, a New School, Columbia e Cornell com a Academia da Latinidade, com vozes como as de Craig Calhoun, Suzan Burk-Mors, Cláudio Lomnitz, Sergio Judice, Walter Mignolo e, por força, Samuel Huntington. O de que se cogita, sim, é de resistir, cada vez mais, à facilidade dos diagnósticos e à tentação das polaridades quando, exatamente, e pela primeira vez, na história moderna, a potência incomparavelmente hegemônica traz no seu seio um temor da destruição ou, sobretudo, o transforma no rationale capaz de pôr a mais poderosa das democracias a debela-lo. O que Khatami prometeu começar, ainda ao estilo de uma belle époque, da confiança na razão, tem como parceiro uma Latinidade, como o Ocidente permeável, numa agenda contra o tempo, antes da robotização do diálogo pela "civilização do medo".


Jornal do Commercio (RJ) 1/10/2004