Jacques Chirac apoiou a criação do “Fundo Lula”, iniciativa inédita de potência do primeiro mundo, acolhendo a proposta de décadas das periferias. Amadureceu, sobre outras bases, a idéia da taxa Tobin, de extrair percentos da abastança dos ricos em favor da mudança social dos países desmunidos. O alvo é o comércio de armamentos e o presidente francês não deixou dúvida quanto ao impacto da garfada, já que a sua nação é a terceira exportadora mundial deste produto. A atitude marca um novo protagonismo da velha Europa, a partir de Paris. Acompanha o racha começado contra a guerra no Iraque, tornado nítido na Conferência de Evian, no ano passado - onde o presidente Bush compareceu entre duas portas giratórias.
Lula, por este sucesso, sai da plangência dos pobres, solta-se do Mercosul, e marca a aliança transcontinental com Pretória e Nova Deli. A França, há dias, em Genebra, tornou nítido um rebalanço da cooperação internacional frente à hegemonia americana e o risco de uma dupla dose de Bush no Salão Oval. O artífice é Dominique de Villepin que, há exatamente um ano, na mídia mundial, deu a sua voz e o seu aplomb à certeza do veto francês à invasão do Iraque com a bênção da ONU. O ministro do Exterior da França, cientista político e poeta, visitou-nos há dias, no turbilhão entre Brasília, Buenos Aires e México para depois aterrissar nos Estados Unidos. Suas horas de estada foram as dessas indagações da cabeça, que não se demitiu da análise crítica e, em palácio, foi às perguntas difíceis. Encontrou-se no café da manhã com todo um naipe de intelectuais brasileiros, de Francisco Oliveira a Juremir Machado, a Helio Jaguaribe e Marilena Chauí - sem faltar o toque do poeta Bruno Tolentino - para saber, em respostas polêmicas, do contraponto entre as expectativas e a vigência do “outro Brasil”, que levou Lula à Presidência.
Na conferência aberta do Instituto Rio Branco, Villepin não ficou apenas no escorço agudo do Brasil de hoje, juntando as glórias de Castro Alves e Machado de Assis, a Chico Buarque, Caetano Veloso ou Niemeyer. Aprofundou conceitos definidores desta nova emergência mundial de seu país, voltado a todo Hemisfério Sul numa retomada moderna da França Antártica. E renovou as perspectivas geopolíticas, à vinculação comum à latinidade dentro do Ocidente, à nossa visão civilizatória flexível e porosa ao diálogo de todos os quadrantes.
O abraço natural de nossa cultura sai do Mediterrâneo e vai ao Atlântico, à América Latina e à África neste outro lado do nosso oceano, onde a França tem se avantajado em parceria com o continente. Insiste neste novo horizonte de uma cooperação lá, com o Brasil, a partir sobretudo, à da nossa enorme experiência no combate à Aids, que hoje já ameaça 20% da população africana.
O ministro foi às questões cruciais. Claro, aí estão os subsídios agrícolas, impedindo a competição com as nossas exportações. Apoiando o protecionismo, Villepin reforçou a “cultura da ruralidade” de seu país, exemplo dessas novas componentes que traz aos fluxos sumários de mercadorias e balanços financeiros.
Há neste universo, outros trunfos em jogo. E a defendê-los - insistiu - asseguram-se fatores arraigados da identidade de cada país, na salvaguarda das diferenças em tempos de mercados globais. Isto para, logo, travar o arrastão que vai nos levar, no Salão Oval, à hegemonia sem retornos.
Esta presença e esta contramão de Paris, nesses meses, tornam-se ainda mais estratégicas quando, na antevisão das eleições de novembro, os republicanos já começam a castigar a candidatura Kerry, em nome de um novo fundamentalismo que vê no adversário um “negador da cultura americana”. Tal como se o centrismo dos democratas já se chocasse à nova natureza, em que os Estados Unidos de Bush servem à guerra permanente.
Lula já ganhou reconhecimento internacional enquanto busca a alternativa, nessa esquerda em processo, que dividiu os debatedores em Brasília. Da mesma forma a França de Chirac e Villepin enfrenta um mundo contra os fatos consumados do Império - um futuro dos simulacros, ou das modernizações nascidas do furor integrista das cruzadas de Washington. Ouvimos o “Grito das Gárgulas”, como evoca um dos últimos livros do ministro-poeta. É o chamamento multissecular do nosso Ocidente, das figuras da Catedral de Paris, como poderia ser das lanças esguias de Niemeyer, em Brasília. Latinidade, em que os arcos, no Planalto, encontram as rosáceas perenes da Notre Dame.
O Globo (RJ) 16/2/2004