São, na verdade, os resultados das eleições municipais de outubro de 2000 que vão fixar de vez em torno do PT o avanço o congruente contra o que está aí, a partir do peso estratégico da mudança brasileira, dentro do perfil que lhe apontou o censo recém publicado, dando pela inaudita percentagem de 81% dos brasileiros vivendo em cidades, e a sua larga maioria nas nossas megalópoles.
À polarização econômica seguiu-se, nesta dinâmica mais larga da última década, o acelerar-se da concentração geográfica do país. Ou, mais ainda, o enlace de uma nova política, possibilitada pelo grande anel das cidades, e são 36 as nossas, de mais de 500 mil habitantes, das quais 50% já arvoram a bandeira petista.
E nelas, inclusive, o impacto desta nova opção já se bateou frente aos parasitas de uma ideologia populista, ou da perda de impunidade dos aliancismos de circunstância, desmontando-se, de vez, a força moribunda do brizolismo. Ou travando-se o ímpeto verdadeiro de busca da alternativa, ditada tão só pelo oportunismo infiltrado pela candidatura de Ciro Gomes, na tradição de maior sobriedade política com que os melhores quadros do antigo PC confrontaram com os situacionismos de sempre e os modelos neocapitalistas ortodoxos em que dobram o cabo do segundo mandato do tucano.
“Tertius”
Na verdade, num quadro tão exausto de uma repartição final de forças, perdeu-se por inteiro, já, a argüição de uma “tertius”, tanto não se tivesse pautado de maneira tão absorvente o que o Governo persegue como ortodoxia, inclusive profligando o populismo de direita de ACM, enfrentando a inabalável consistência com que, no núcleo da sua proposta, o PT tem o reconhecimento inevitável da constância de um comportamento de oposição, e do abandono de todo o atalho a uma chegada sôfrega ao poder.
Na verdade a busca hoje das alternativas ao “statu quo” quer negar a crença num futuro darwinista, que se agarra ao ventre do modelo neoliberal. Mesmo sem rechear por inteiro o programa diferente, o que o Pt consegue oferecer ao Brasil na virada do milênio são novas premissas de crença nesta construção prometida.
E na sua dinâmica beneficiam-se de critérios de adesão no repúdio da inércia neoliberal, suas perdas de pé, sua contínua esperança de tão só voltar a respirar na bonança da conjuntura. Uma crescente aceitação do PT apóia-se na descontaminação de base, em que pode ganhar uma adesão política, sem os fantasmas da “real politik” da esperteza, ou de um aliancismo comprometedor da credibilidade a que fez jus o seu jejum continuado do poder.
Na moldura dos arranjos pré-eleitorais, a dominar todo o início de 2001, não há como descartar ao avanço do PT o novo delineio, a prazo longo, em que impactará a guinada profunda do neoliberalismo, lá fora, depois da era Clinton. A entrada do novo governo americano no quadro de absoluta entrega aos dinamismos de mercado, sujeitos ao mínimo de regulação pelo Federal Reserve Bank, não deixa dúvida sobre o que pelo menos se caracterizará como cumplicidade com o avanço dos desequilíbrios do desenvolvimento latino-americano.
Perde-se, de vez, qualquer veleidade de que se defina uma regulação destes jogos, por fora do controle olímpico da taxa de juros. Nem nos poderemos remeter ao que amealhe imediatamente todo novo influxo de capitais - de que continua a depender basicamente toda a retomada de nosso dinamismo econômico - frente aos balanços de pagamento externo, ou aos números que, à sua mercê, possam representar o firme resgate deste último desequilíbrio.
Voltamos à história constantemente abortada, quando o castigo da conjuntura nos deixa, sempre, com a triste festa de todas as repartidas, em que o modelo situacionista reanuncia metas, adia-as, retoma-as, e termina por nos deixar no mesmo lugar, quanto a um outro desenho de futuro.
Repulsa
É este dinamismo traiçoeiro, que termina por criar a repulsa, por setores ingênuos ainda a absoluta crença nas convenções de Estado de Direito, e à presunção de justiça de seus aparelhos, quanto aos beneficiamentos indiscutíveis desta atuação. Desponta, ao invés, o privilégio dos favorecidos continuadamente pela máquina e pela sobrevida a qualquer preço do “statu quo”, por sobre os perfis de honestidade ostensiva, ou de funcionalidade, ou eficácia, do regime.
Via de regra, são essencialmente as classes médias as que mais se sensibilizam a este jogo de dois pesos e duas medidas, tanto vivem do idealismo inevitável de grupos que têm por horizonte exatamente este bom funcionamento do regime - de que não mais exigem, e podem, portanto, esperar o cumprimento de todas as suas presunções.
Em tais setores, a descoberta da corrupção ou dos favorecimentos do poder tem sempre o efeito dos escândalos sociais, de rejeição “in totum” do que a princípio se acolhia e, pois, da rápida generalização dos climas de desconfiança, seguindo-se a qualquer correção de prova dos abusos de favores ou da tentativa do governo de encobri-los a ferro e fogo.
E o PT se transformando em sócio oculto e beneficiário desses traumas sociais do sistema, em que a classe média reconhece a prevaricação continuada dos atores políticos e sociais, condôminos dos seus aparelhos e seus benefícios. E sócios esses, indistintamente, das muitas legendas políticas em que se reparte uma mesma fidelidade ao “statu quo”, e de princípio uma desconfiança dos partidos de esquerda, tal como das novas classes sociais emergentes, no país a pique da marginalidade.
O resultado é esta migração de lealdades em que, afinal, o PT vai às gambiarras sociais, e se credencia como o único partido objetivamente incorruptível. Ou a única facção merecedora da credibilidade destas classes, que o dinamismo socio-econômico afastou das grandes “combinazziones” econômicas, e que se transformam, afinal, nos titulares da expectativa das ações conformes do poder, e da efetiva administração pelos governos, de um bem comum.
Nos primeiros perfis, inducentes a 2002, na definição das presidências do Senado e da Câmara, o PT terminou por poupar-se a qualquer comprometimento aliancista. Mas uma vitória como a de Aécio Neves inicia, de parte do PSDB, o racha entre o mero situacionismo e a ocupação de um centro-esquerda nacional. Aí avança, historicamente, a legenda social democrática sobre o pólo que reparte naturalmente com o PT, a prazo médio.
Mas não tanto, a permitir que o purismo barre o caminho da polarização “objetiva”, onde o partido caminha por parcerias necessárias. Nelas é Lula, mais que o PT, que permanece como agregador desta via nova, onde encontra a lição de Mário Covas, por sobre a legenda tucana, ou a de um Aécio Neves, para além da mera coalizão vencedora na Câmara.
Nelas as classes médias cobram um possível novo alinhamento. Do próprio Lula, por entre novas lideranças de partido, vai depender, ainda, o melhor consórcio partidário. Mas num rateio de chapa - para ganhar - muito diferente da primeira solidão da legenda petista, como a do Brasil do outro lado.
Jornal do Commercio (RJ) 23/2/2001